quinta-feira, 17 de janeiro de 2013

O grito do aço – Os olhos de paz | Parte 01.


Há dias o leito de Aidil é a relva gelada das planícies que, sem perguntas, o aceita e oferece aconchego para o corpo cansado. Deitado, depois de marchar por um dia inteiro, tendo apenas breves paradas para comer e descansar, ouve os insetos voando, mata algo lhe que subia o braço esquerdo e esfrega as pernas doloridas. O ar gelado o incomoda, já não é mais um jovem, as articulações doem, os músculos se vingam das agressões pretéritas, ele ajeita as peles novamente enquanto amaldiçoa alguém que não está ali. Olha então para o alto e observa uma nuvem gigantesca que cobre gradativamente o céu noturno, estrela por estrela, insaciável, sempre em frente. Opondo-se a ela está a lua crescente, como um general, firmemente postada orientando seu exército que sucumbe, um a um, perante aquela sombra que tudo consume. Entretanto, ela não se move, não recua, não avança, apenas espera ao lado de seus homens o sussurro do destino último de cada soldado, aceita sua sina e seu brilho parece, agora, mais poderoso do que nunca. Ele sorri, há beleza naquilo, há honra, Aidil dormiu satisfeito, amanhã a natureza seguiria seu curso, assim como no céu escuro. Ao seu lado pouco mais de duas centenas de homens dormem acompanhados da mesma relva, da mesma certeza, recuperando forças para o dia seguinte. Acima deles o embate continua.

*****

A noite ainda lança seus tentáculos sobre o mundo, porém todos marcham em longas filas, enquanto se aproximam daquilo que os motivou a abandonar seus lares e famílias. Mastigam pedaços de carne ou pão, as botas pesadas marcando o campo, o som das espadas e escudos ecoando no descampado. Um riso aqui, uma maldição ali, poucos falam, a brisa fria os deixa mais inclinados a reflexões pessoais do que conversas. O sol nasceu e o silêncio se manteve. Caminham até que o fim da planície, a sua frente uma montanha, Aidil faz sinal para que todos subam. No céu uma nuvem escura cobre tudo, tornando o sol pouco mais que uma lembrança, trovões fazem parecer que gigantes duelam e atiram pedras uns nos outros, o vento frio lhes corta a pele e algumas gotas de chuva marcam a rocha. Chegando ao cume podem ver seu objetivo no fundo do vale: Karnak. Uma pequena cidade sem tradição guerreira, localizada no meio de uma grande rota comercial, um alvo fácil, é possível sentir o cheiro do ouro, das sedas e das mulheres. Entre os homens se inicia uma agitação, a presa foi avistada, atacar é mais que um desejo, se faz necessidade. É quando um homem de olhos escuros e calmos, portando uma espada com não menos que um metro e meio, sem escudo, se posta à frente do grupo e pede a palavra. Seu nome é Dorian, líder e general do grupo.

Diante de nós está a razão pela qual passamos dor e frio, o motivo pelo qual ficamos sem nossas mulheres!” Ele faz uma pausa para que os homens possam rir. “Aidil, talvez para ti esta não seja uma situação ruim, não é? Já almocei em tua mesa e comi o que Olga prepara, todos podem ver teu sorriso por estar aqui!” Risos irrompem. “Posso ver nos olhos de cada um o fogo que nos move! Por dias marchamos, enfrentamos com nossos corpos as destemperes da natureza, punidos pelo sol, açoitados pelo vento, mas aqui estamos. O chão frio nos foi leito, sem o calor de nossas mulheres para acalentar a dor, sem nossos filhos para abraçar, mas aqui estamos.” Urros de aprovação são silenciados por sinais de Aidil e Dorian. “Agora, do outro lado desta montanha está Karnak, nosso butim nos espera, nosso espólio merecido está próximo! Vamos pegar o que é nosso, mas com cautela, em silêncio, não quero dar más notícia para a família de nenhum dos meus amigos aqui presentes. Que os deuses nos favoreçam, que o sangue de nossos inimigos sacie a sede de nossas espadas, que lave o chão e sacie Gundör, que ele nos faça fortes!

Todos levantam os braços, espadas em punho apontando para céu, sem gritos, sem urros, Dorian acordou o guerreiro dentro de cada um daqueles homens, entretanto isto não os fará dar ao inimigo a chance de os ouvir. A descida é difícil, pedras soltas, a chuva tornou tudo escorregadio, há lama, a jornada se torna lenta. Alcançam o pé da montanha e procuram abrigo entre as sombras das árvores do vale, o dia nublado é uma vantagem. Aguardam, muitas vezes pilharam outras cidades, sabem como proceder, por isso esperam por Aegir. Podem o avistar ao longe, caminhando com uma flauta, tocando e dançando para os poucos guardas visíveis da cidade. Aegir é um homem competente no que faz, os guardas olham apenas para ele, encostam suas lanças no muro e batem com as mãos nas coxas enquanto ele os entretém cantando, tocando, fazendo piadas, fazendo perguntas. Ele arranca risadas e informações com o poder de sua lábia, com a graça de sua dança, com notas dignas do menestrel de um rei. De repente uma cambalhota, é o sinal, não há outros guardas próximos. Avançam dois grupos de quatro homens, evitam correr, o solo está molhado e escorregadio, o som de seus passos nas poças pode os entregar. Ainda assim seguem, cautelosos flanqueando o grupo de cinco homens que ri da excelente performance do bardo, que, pela primeira vez, desafina terrivelmente sua flauta, é o sinal. Flechas voam de encontro aos cincos homens, quatro caem mortos. O último tem a coxa atravessada por um dos projéteis, a dor é lacerante, entretanto seus gritos se afogam no próprio sangue, é possível ouvir um estranho som que vaza pelo corte em sua garganta enquanto Aegir limpa a adaga. Ambos os grupos chegam ao portão, afastam os corpos da entrada. O bardo relata que existem pouco mais de quarenta mercenários contratados dentro da cidade, que só se apresentam quando o alarme soa, se ocupando com outras atividades que lhes geram renda enquanto sua presença não é requerida, os demais são aldeões, agricultores e comerciantes, mulheres e crianças. O vento ganha velocidade, a chuva se torna pesada, pingos grossos encharcam os nove homens, raios rasgam o céu. A tempestade abafaria qualquer som da invasão, talvez até gritos mais distantes. Gundör os favorecia, devem agora honrar a dádiva, o solo exige o sangue dos que vivem dentro destes portões.


Aegir faz surgir um pano azul. É o sinal.

Um comentário:

  1. Tarso. Adorei o seu texto. Talvez por considerar o passado mais instigante do que a atualidade corriqueira e entediante, ou talvez por influência da escrita do meu próprio filho, esse é, sem dúvida, o gênero que mais aprecio. A sua escrita flui com naturalidade e aguça a curiosidade. Estou à espera da parte 2.

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