- Duas dessas e uma dessa.
- Só tem uma.
- Pode ser... Droga, ela já vai chegar, tenho que comer
rápido.
- Dois e sessenta. Para levar?
- Sim, obrigado.
Quando estava com Clarice ele nunca podia sequer passar
perto de um boteco desses “Vai comer isso? É só porcaria, faz mal! Não vou te
beijar se comer isso, que nojo!”, porém era algo que não podia ser evitado, era
mais forte do que Marcelo. Ele sempre, desde criança, na escola, fora da
escola, na adolescência, na vida adulta, sempre, sempre mesmo, se existia algo
de que ele tinha certeza era isso, coxinha era uma delícia, fosse de terminal
de ônibus, com catupiry e salsinha, aquelas que só têm massa e molho de tomate,
todas, era um apaixonado. Agarrou alguns guardanapos e sentou. Os preparativos
do casamento o estavam cansando, não tinha talento para aquilo, ficou quase uma
hora olhando dois vermelhos iguais, mas de nome diferente, para escolher qual
seria a cor do detalhe do laço do arranjo da mesa da segunda madrinha da noiva.
Fábio, seu amigo e padrinho, ria muito nessas horas. Não ajudava em nada, só
estendia o dedo em riste e balançava os ombros no ritmo de uma respiração
descontrolada, às vezes sem fôlego tossia uma ou duas vezes, depois zombava do
nome da cor do vestido da daminha. A coxinha estava uma delícia, com ketchup e
laranjinha melhor ainda, tinha gosto de infância, por mais estranho que seja um
adulto dizer isso, ainda bem que não foi em voz alta. É, daminha. Quantas vezes
pediu para Clarice dispensar a menina? Oito, nove? Aquela criança lhe dava nos
nervos, tinha muitos dentes na boca, o sorriso parecia engolir o mundo. Claro
que a noiva não aceitou, disse que a sobrinha era um amor, uma luz na vida dela
e da irmã, que seria um momento mágico quando ela e o irmão gêmeo entrassem na
igreja. Igreja. Ele era ateu, muito ateu, escrevia em um blog ateu, palestrava
sobre ateísmo, Clarice fez crisma, primeira comunhão e estudou em colégio de
freiras, o tio é padre, a mãe morou em um convento até os vinte e dois anos.
Clarice tinha peitos lindos. O padre não queria lhes casar, disse que Marcelo
pregava a palavra do diabo, que ele teria de se converter. Ele continua ateu, o
irmão do sogro teve de usar vários contatos.
Último gole de laranjinha, um momento solene. “Não tem nada
mais viril do que isso. Se eu fosse dizer para alguém o que é ser homem, diria
que é comer uma coxinha e beber uma laranjinha no meio-fio.” Era um pensamento
bonito, algo que ele não podia defender na frente das outras pessoas sem aquele
sorrisinho no final, aquele que faz os outros pensarem que você não está
falando sério, mesmo sendo, muito. Marcelo limpou a boca com um daqueles
guardanapos finos e vagabundos, levantou e caminhou até a entrada da Grande Dia, uma das melhores lojas de
coisas de casamento da cidade, segundo a sogra. Ele nunca mais foi o mesmo
depois de saber que o dono tinha por hobbie desenhar trajes de noiva. Aquilo
parecia errado em tantos níveis que Marcelo até hoje fingia não ver o pequeno
proprietário, mesmo que o sujeito usasse apenas fraques azuis, lilases e por ai
vai. Os últimos dias estavam sendo complicados, muitas escolhas, pouco
entendimento do que acontecia ao redor. Sempre que entrava em desespero lembrava-se
de Clarice jogando Wii Resort, que visão. Ele sabia que dizer para a noiva que empinar
a bunda para ajudar a acertar a bola no golfe era uma mentira, mas ninguém
podia condena-lo por isso. Fábio estava lá, enfiado em um terno verde e
incomodando a vendedora para conseguir um chapéu da mesma cor, provavelmente
tentando parecer o Charada. Uma pena só terem uma coxinha, ainda estava com
vontade. O celular estava tocando.
- Oi, linda.
- Amooooor! Estou no apê, entregaram a cama errada, tem que
ir na loja reclamar, essa é horrível!
- Vou agora!
- Não, fica ai e resolve o teu terno e do Fábio, ai, já
estão enrolando tem três semanas... Tem que ser ele mesmo?
- Tua sobrinha vai ser daminha?
- Ridículo.
- Hate the game, not the player.
- Vou acabar contigo no golfe.
- Haha, tu sempre acaba comigo.
- Hehe, verdade, jogas muito mal, amor, tens que te
concentrar mais.
- É...
- Só queria te avisar isso, vou resolver depois. Estou
fechando as coisas aqui e te encontro ai em uns quinze minutos.
- Tá.
- Até daqui a pouco, gatão.
Agora eram dez vezes, não ia conseguir se livrar daquela
criança. Marcelo estava cansado, sentou em um sofá e ficou olhando para cima.
Pensou na vida, na morte, nas prestações da casa, no salário baixo. Quando
voltou a si a daminha estava na sua frente, parada, olhos fixos. Sorrindo. De
alguma maneira, que a ciência talvez consiga um dia explicar, ela sorriu mais,
mostrou mais dentes e saiu correndo com um vestido que só não era mais feio do
que o nome da cor.
Ele não entendia como as coisas tinham terminado assim.
Sempre se imaginou vivendo a vida ao máximo, festas, mulheres, fazendo só que
bem entendesse, sem dar satisfações, sem crianças-demônio, sem dois nomes para
o mesmo vermelho. Onde ele tinha errado para que tudo tenha se transformado
nessa realidade bizarra? Não podia jogar videogame quando queria, não podia nem
comer coxinha! Coxinha! Sentiu um profundo amargor, uma dor que doía de um
jeito estranho. Levantou a cabeça e viu Clarice. Ela vinha andando com um
sorriso lindo no rosto, estava desarrumada e visivelmente cansada. Era a mulher
mais linda do mundo. Ficou em pé, a abraçou e deu um longo beijo. Tinha a vida
dos sonhos de qualquer homem.