terça-feira, 18 de setembro de 2012

O amor de um homem



- Duas dessas e uma dessa.
- Só tem uma.
- Pode ser... Droga, ela já vai chegar, tenho que comer rápido.
- Dois e sessenta. Para levar?
- Sim, obrigado.
Quando estava com Clarice ele nunca podia sequer passar perto de um boteco desses “Vai comer isso? É só porcaria, faz mal! Não vou te beijar se comer isso, que nojo!”, porém era algo que não podia ser evitado, era mais forte do que Marcelo. Ele sempre, desde criança, na escola, fora da escola, na adolescência, na vida adulta, sempre, sempre mesmo, se existia algo de que ele tinha certeza era isso, coxinha era uma delícia, fosse de terminal de ônibus, com catupiry e salsinha, aquelas que só têm massa e molho de tomate, todas, era um apaixonado. Agarrou alguns guardanapos e sentou. Os preparativos do casamento o estavam cansando, não tinha talento para aquilo, ficou quase uma hora olhando dois vermelhos iguais, mas de nome diferente, para escolher qual seria a cor do detalhe do laço do arranjo da mesa da segunda madrinha da noiva. Fábio, seu amigo e padrinho, ria muito nessas horas. Não ajudava em nada, só estendia o dedo em riste e balançava os ombros no ritmo de uma respiração descontrolada, às vezes sem fôlego tossia uma ou duas vezes, depois zombava do nome da cor do vestido da daminha. A coxinha estava uma delícia, com ketchup e laranjinha melhor ainda, tinha gosto de infância, por mais estranho que seja um adulto dizer isso, ainda bem que não foi em voz alta. É, daminha. Quantas vezes pediu para Clarice dispensar a menina? Oito, nove? Aquela criança lhe dava nos nervos, tinha muitos dentes na boca, o sorriso parecia engolir o mundo. Claro que a noiva não aceitou, disse que a sobrinha era um amor, uma luz na vida dela e da irmã, que seria um momento mágico quando ela e o irmão gêmeo entrassem na igreja. Igreja. Ele era ateu, muito ateu, escrevia em um blog ateu, palestrava sobre ateísmo, Clarice fez crisma, primeira comunhão e estudou em colégio de freiras, o tio é padre, a mãe morou em um convento até os vinte e dois anos. Clarice tinha peitos lindos. O padre não queria lhes casar, disse que Marcelo pregava a palavra do diabo, que ele teria de se converter. Ele continua ateu, o irmão do sogro teve de usar vários contatos.
Último gole de laranjinha, um momento solene. “Não tem nada mais viril do que isso. Se eu fosse dizer para alguém o que é ser homem, diria que é comer uma coxinha e beber uma laranjinha no meio-fio.” Era um pensamento bonito, algo que ele não podia defender na frente das outras pessoas sem aquele sorrisinho no final, aquele que faz os outros pensarem que você não está falando sério, mesmo sendo, muito. Marcelo limpou a boca com um daqueles guardanapos finos e vagabundos, levantou e caminhou até a entrada da Grande Dia, uma das melhores lojas de coisas de casamento da cidade, segundo a sogra. Ele nunca mais foi o mesmo depois de saber que o dono tinha por hobbie desenhar trajes de noiva. Aquilo parecia errado em tantos níveis que Marcelo até hoje fingia não ver o pequeno proprietário, mesmo que o sujeito usasse apenas fraques azuis, lilases e por ai vai. Os últimos dias estavam sendo complicados, muitas escolhas, pouco entendimento do que acontecia ao redor. Sempre que entrava em desespero lembrava-se de Clarice jogando Wii Resort, que visão. Ele sabia que dizer para a noiva que empinar a bunda para ajudar a acertar a bola no golfe era uma mentira, mas ninguém podia condena-lo por isso. Fábio estava lá, enfiado em um terno verde e incomodando a vendedora para conseguir um chapéu da mesma cor, provavelmente tentando parecer o Charada. Uma pena só terem uma coxinha, ainda estava com vontade. O celular estava tocando.
- Oi, linda.
- Amooooor! Estou no apê, entregaram a cama errada, tem que ir na loja reclamar, essa é horrível!
- Vou agora!
- Não, fica ai e resolve o teu terno e do Fábio, ai, já estão enrolando tem três semanas... Tem que ser ele mesmo?
- Tua sobrinha vai ser daminha?
- Ridículo.
- Hate the game, not the player.
- Vou acabar contigo no golfe.
- Haha, tu sempre acaba comigo.
- Hehe, verdade, jogas muito mal, amor, tens que te concentrar mais.
- É...
- Só queria te avisar isso, vou resolver depois. Estou fechando as coisas aqui e te encontro ai em uns quinze minutos.
- Tá.
- Até daqui a pouco, gatão.
Agora eram dez vezes, não ia conseguir se livrar daquela criança. Marcelo estava cansado, sentou em um sofá e ficou olhando para cima. Pensou na vida, na morte, nas prestações da casa, no salário baixo. Quando voltou a si a daminha estava na sua frente, parada, olhos fixos. Sorrindo. De alguma maneira, que a ciência talvez consiga um dia explicar, ela sorriu mais, mostrou mais dentes e saiu correndo com um vestido que só não era mais feio do que o nome da cor.
Ele não entendia como as coisas tinham terminado assim. Sempre se imaginou vivendo a vida ao máximo, festas, mulheres, fazendo só que bem entendesse, sem dar satisfações, sem crianças-demônio, sem dois nomes para o mesmo vermelho. Onde ele tinha errado para que tudo tenha se transformado nessa realidade bizarra? Não podia jogar videogame quando queria, não podia nem comer coxinha! Coxinha! Sentiu um profundo amargor, uma dor que doía de um jeito estranho. Levantou a cabeça e viu Clarice. Ela vinha andando com um sorriso lindo no rosto, estava desarrumada e visivelmente cansada. Era a mulher mais linda do mundo. Ficou em pé, a abraçou e deu um longo beijo. Tinha a vida dos sonhos de qualquer homem.

quinta-feira, 13 de setembro de 2012

O pior dos crimes



Errado, imoral, totalmente inaceitável. Por onde passava despertava revolta, gritavam “vergonha”, “grotesco”, “traidor”, ele não ligava, continuava andando com um sorriso de escárnio. A esposa o abandonou, os filhos levados para morar com os avós, vizinhos o amaldiçoavam em voz alta. Entretanto ninguém o tocava, não era permitido, não era prudente. Na porta de sua casa, em grandes letras vermelhas, podia se ler: Assassino.


***
A manhã se anunciava, o sol iluminava o peito branco e musculoso de Péricles enquanto este o amaldiçoava aos berros. Olhou para o lado e empurrou a esposa, foi até as crianças e mandou que levantassem para comer, saiu do lugar que chamava de casa e decidiu andar um pouco. A vida na granja não estava fácil, não tinha emprego, não tinha dinheiro, mas era o marido de uma vagabunda e pai de quatro aberrações que só faziam comer. Odiava. Odiava a família, odiava os amigos, odiava a si, a única coisa que amava era, justamente, odiar tudo isso. Sentia um prazer crescente ao imaginar como causaria sofrimento sem fim em cada uma daquelas criaturas desprezíveis. A falta de respostas o incomodava um pouco. Xingou um vizinho que o cumprimentava e seguiu o caminho, procurando formas de exercer uma vingança contra quem cometera o crime de nascer, ou seja, de lhe perturbar. Irritado chutou o chão, não podia fazer nada, estava pobre como nunca, sem um centavo. Já pensava em voltar para casa quando viu um papel no chão. Curioso pegou e leu. Seus olhos se arregalaram e um sorriso de alegria emergiu, achara uma solução, dinheiro não seria mais problema. Dinheiro? Faria de graça!


***
Olhava o corpo, pegava a faca e passava o fio nas juntas, cortava, desmembrava, tirava a pele. Além de cruel o trabalho era metódico, separava as partes, coxas para um lado, pés para o outro, pescoço, peito, fígado, coração, nada escapava da faca. Péricles tinha um dom, poucos demonstravam tanto prazer em seu ofício, tanta desenvoltura, parecia ter nascido para aquilo e, caso alguém lhe perguntasse, provavelmente concordaria.


***
Segurou bem o papel e voltou correndo para casa, driblou a prole ranhenta, evitou as reclamações do cônjuge colocando a língua para fora. Parou. Olhou tudo aquilo calmamente, demoradamente, sorriu de uma forma tão enlouquecida que mãe e filhos fizeram silêncio, com medo de algo que não sabiam bem o que era. Ele riu, depois riu mais alto, gargalhou e saiu da casa.
Na rua encontrou o vizinho de cima, que queria cobrar uma pequena dívida. Tentou ignora-lo, mas o sujeito se postou a sua frente impedindo a passagem. Péricles o olhava com olhos esbugalhados, vidrados, a respiração era animalesca. Se lhe perguntassem hoje, o vizinho não saberia dizer o motivo pelo qual deu um chute no estômago do dono daqueles olhos esbugalhados, entretanto naquele momento pareceu a coisa certa a fazer. No chão, espumando de raiva, prazer e felicidade, rindo, gritando para tudo e todos, se deixou. Olhou o céu azul, ele iria tingir tudo de vermelho.


***
Quando estava na hora do almoço gostava de ir ajudar no preparo, sua parte favorita era olha-los e dizer que iria ficar tudo bem, mas usando a roupa de trabalho suja de sangue. Depois amarrava os pés e os pendurava em ganchos. Nesta parte sempre tinha de abafar a gargalhada, era quando percebiam o que ia acontecer, porém já era tarde, a cabeça doía por causa do sangue, os pensamentos ficavam lentos, os sons abafados... enxergavam apenas Péricles, rindo e apontando para cada um deles.


***
 Correu até chegar à porta do lugar indicado no panfleto, uma casa de tijolos, pintada algumas décadas atrás com o que parecia ser verde, ou talvez azul. Atravessou a porta e andou pelo corredor, sentia o cheiro de sangue velho, avistou um homem gordo, vestindo calças jeans e camisa xadrez, sentado, largou o papel na mesa e olhou-o fixamente. Havia um corpo e uma faca sobre a mesa. O homem gordo parou o que estava fazendo e o encarou, analisando aquele sujeitinho que entrara em sua sala de cima a baixo, tentava entender. Péricles pegou a faca e esquartejou o corpo, separou os órgãos, tudo com enorme rapidez e alegria.
O homem atrás da mesa disse "Sabe, isso ai não parece certo...", sem ao menos terminar a frase, um par de olhos lhe encarava com um fogo como nunca havia visto. O dono da faca e do corpo ficou admirado, deixou suas desconfianças de lado.


***
Esta era a hora que ele menos gostava, o fim do turno, o momento de ir embora. Tirou a roupa, limpou e guardou as facas, seguiu em direção à saída. Olhou para o chão árido que se estendia até a casa onde, há pouco tempo, morava com uma família de vergonhosos desperdícios. Sentiu uma pequena tristeza, entretanto sabia que amanhã tudo recomeçaria, o sangue, a dor, o ódio no olhar de cada um, pois sabiam que quando menos esperassem poderia ser um deles. Não pode evitar a gargalhada. Ao passar pela porta do frigorífico ajeitou as penas do peito e a crista, ele realmente amava aquele trabalho.

sábado, 8 de setembro de 2012

O dia em que tudo quase mudou



Seis horas e seis minutos. Descontados seis minutos de tolerância. Eficiência e retidão sempre foram importantes para Cássio. Desligou o computador, cobriu mouse, teclado e monitor com protetores, fechou as gavetas, uma, duas voltas na chave. Levantou. Sem olhar estendeu a mão para a direita, agarrou a alça da pasta e com um movimento limpo colocou-a sobre a cadeira. Abriu o zíper, retirou um livro de uma das divisórias, da mesa apanhou alguns maços de papel que cuidadosamente acomodou na pasta, recolocando, em seguida, o livro, de modo que não amassasse os papéis, fechou o zíper, levantou a pequena mala e posicionou a cadeira junto da mesa. Girou nos calcanhares, riu um sorriso de satisfação e abriu a porta do escritório, atravessou, fechou, uma, duas voltas. Saindo pelo corredor passou por Ester, Fábio e Elíade, da contabilidade, sorriu e balançou a cabeça para cada um, Ester não correspondeu. Virou para a direita no corredor, depois à esquerda, mais uma vez à esquerda, parou na frente do elevador. Cássio olhou desconfiado, não havia ninguém. Era o horário de saída, mas só ele estava ali, cotovelos deveriam estar lhe acertando na altura dos rins, um sorriso ou outro desferido para dizer que não doeu. Nada.

Cássio podia sentir as costas úmidas, a camisa grudava, as mãos suavam. Segurou a pasta de modo mais firme, o elevador demorava. Havia uma pressão em sua nuca, como se alguém há muito lhe observasse e julgasse, a pele quase queimava. Jogou os olhos por cima do ombro esquerdo, do direito, nada. Riu um riso bobo. O elevador não chegara, nem ninguém. Olhou o relógio, seis e onze. Ninguém, nada. Havia algo errado. Olhou para o vaso próximo da mão que segurava a pasta, ele estava ali ontem? Não conseguia lembrar. A luz parecia diferente, mais fraca, mais amarela. Mais uma vez jogou os olhos por cima do ombro esquerdo, então o direito. Riu um riso. Sentiu o coração bater forte. Abriu a pasta e pegou um pequeno frasco. Um, dois, três comprimidos, mastigou e engoliu. Olhou o relógio, seis e treze. Algo definitivamente estava errado.

Deu meia volta para a esquerda, caminhou alguns passos reticentes. Ninguém. As luzes piscaram. Nada bom. Novamente a sensação, havia alguém ali. Certamente alguém o observava, alguém estava perto, muito perto. A pasta pesou, passou-a para a outra mão e percebeu que não fechara o zíper. Fechou. As meias patinavam dentro dos sapatos, o colarinho estava encharcado. Cássio teve um pequeno calafrio. Desta vez se virou completamente para trás, avistou um vulto. Olhou-o diretamente apenas para vê-lo sumir diante dos olhos. Calma. Mantenha a calma. Repetiu o mantra por alguns segundos. Olhou para o relógio, seis e dezessete. Lá na frente, próximo de onde ficava sua sala pode ouvir alguns sons. Lembrou de Ester, Fábio e Elíade, os três passaram por ele e seguiram naquela direção. Nunca trocara qualquer palavra com qualquer um, mas a situação lhe impelia. Deu alguns passos vagarosos, virou a esquerda, depois a direita, já podia ver sua sala. Um, dois passos. Então tudo ficou escuro. No fim do corredor uma luz por baixo da porta, podia ouvir passos pesados vindos das escadas, ao lado do elevador. Suspirou nervosamente. Uma vez, duas, três, quatro... não eram suspiros, sua respiração estava acelerada. Sentiu uma leve tontura. Por que aquilo estava acontecendo? Ele só queria ir para casa, tomar um banho, jantar, assistir dois capítulos de sua série favorita, ler quinze páginas do livro da vez, arrumar as coisas para amanhã e dormir.

Ouviu uma porta abrir atrás de si, reconheceu o barulho como sendo a da escada. Passos apressados iam na sua direção. Breve pânico. Andou em direção ao final do corredor, para a porta com uma leve luz amarela, ouvia um burburinho agora. Entrou.

Na mesa um bolo de aniversário, nas cadeiras vários pares de olhos lhe olhavam. Entendeu tudo. Pediu desculpas e saiu. No corredor ainda conseguiu ouvir “Poxa, que chato, como ele descobriu?”, “Que cara chato, quem avisou da festa da Ester?”. Cássio sorriu um sorriso de alegria, um boicote, uma rejeição. A vida caminhava normalmente. Girou nos calcanhares e virou à direita, depois à esquerda e mais uma vez à esquerda. Viu um vulto. Sorriu um sorriso de deboche e o ultrapassou. Ouviu dois estalos e sentiu uma breve dor, primeiro nas costas, depois na nuca. Sentiu um líquido quente cobrir suas roupas. A visão nublou, a respiração falhava. Sorriu um sorriso de ironia e assim ficou, até Ester o encontrar. Ela não compartilhou o sorriso mais uma vez.