terça-feira, 29 de janeiro de 2013

Minhas mais doces memórias.



- Não! Eu não vou passar nada!
- Vô ti dexá com dos furo, filho da puta! Mim dá!
- Já falei que não! É minha, cansei dessa palhaçada. Eu decido o meu futuro, não tu!
- I eu cansei di ti, vacilão.

Foi quando ele apontou a arma para minha cabeça, quando vi o dedo se afastar. Olhava para ele e lembrava do Carlos, meu amigo quando criança. E aquele dedo cada vez mais longe.

*****

Minha mãe está me encarando, não enxergo direito, as coisas estão embaçadas. Procuro meus óculos, ou seria meu óculos? Essas palavras difíceis, sempre falei meus óculos, termina com “s” então é plural, meu primo diz que é meu óculos, porque é só um, se eu tivesse um de sol seria meus óculos. Não deixa de fazer sentido. Desde pequeno uso óculos, desde que me lembro troco shampoo por condicionador, uma vez gastei meio pote de condicionador porque ele não fazia espuma, mas nunca foi tão fácil pentear meu cabelo. Fazer o que, é o preço, no banho tinha de tirar os óculos. Shampoo que não arde. Ela diz que está na hora de acordar, que é hora de ir para a escola e que meu pão já está pronto. Levanto, dou alguns passos com meu pijama do Jaspion até a cômoda e tateio procurando a armação. No ensino médio as coisas estão melhores, um pouco, já até converso, me sinto um pouco melhor. Tem uma menina, ela é linda, o nome é Paula, acho que ela gosta do Gustavo. Não consigo achar os óculos, vou para o lado e dou uma topada na cômoda, é a pior dor do mundo. A educação física sempre é ruim, tomo bolada, sempre levo uma na cara e os guris riem porque meus óculos caem, acho que fazem de propósito. Meu pai me deixa na escola, a professora me leva até a sala, hoje é dia de pintar e fazer boneco de massinha, vou fazer o Jiban, ontem ele morreu, fiquei triste. A lareira queima enquanto o pai e a mãe brigam, a Tahiana também está aqui, dou um beliscão nela. Com o Henrique e o Carlos vou andando para o terminal de ônibus, passamos por um mendigo e ficamos com medo, corremos até cansar. Meu dedo ainda dói, engulo o choro. Passei no vestibular para jornalismo, toda a família comemora, vamos a uma pizzaria e meu pai paga tudo, ele e minha mãe se abraçam e beijam. O Gustavo começa a namorar com a Paula, eles parecem felizes juntos. Minha sobrinha faz dois anos e ainda não fala, a Tahiana me conta chorando que ela tem paralisia cerebral. Jorge chuta a bola tão forte que meus óculos quebram antes de cair no chão, eles olham assustados, a Camila está chorando, estou enxergando vermelho do lado esquerdo. Meus pais param de brigar com a Tahiana chorando, falo que ela não gosta que eles briguem. Foi a última vez que os vi brigando. A Letícia gosta do Marcos. Não acho os óculos de jeito nenhum, chamo minha mãe, quem aparece é minha irmã. Odeio jornalismo, me sinto bem melhor fazendo Sistemas de Informação. Luke morreu, enterramos no quintal com a roupa dos Changerman dele. A Camila gosta do Pedro. Chorei no quarto o dia todo de saudades do meu avô, a Vi ficou deitada do meu lado o tempo todo. Último dia de aula, amanhã é o vestibular, saíamos para beber, não lembro como a blusa daquela menina foi para na minha mochila. Passamos outra vez pelo mendigo, o Carlos joga alguma coisa nele, fiquei com pena, mas com medo de ir lá. Uma dor de cabeça me incomoda há dias, minha mãe me obriga a ir ao médico, a Vi também. O senhor Afonso me contrata como programador depois de um ano estagiando, meu salário triplicou, vou para casa contar para a Eduarda. Minha irmã diz que meus óculos não deviam estar lá, que a culpa não foi dela. Uma casa verde com janelas brancas. Três garotos me batem dentro da sala, durante o lanche, a Camila começa a chorar e eles saem correndo. Não passa mais Jaspion na televisão, fico revoltado. A Viviane diz que sou o cara mais legal que ela conhece, diz que precisa me dizer uma coisa e me rouba um beijo. Estrada rosa com meio-fio cor de bocejo. Encontro o mendigo que corríamos quando éramos crianças, ele está andando em minha direção. Minha primeira vez e da Duda, a Tahiana chegou em casa de repente, quase nos viu. Vou passar as férias com meus avós, o vô está doente, jogo videogame com ele quase todo dia. O médico tem uma cara séria. O mendigo tem alguma coisa embaixo da blusa, ele quer minha carteira. A Eduarda gosta do Miguel, vadia, podia ter me dito. Uma abóbora falou comigo, o coelho vai ser rei, dominou o país dos gatos. Tenho câncer, é terminal, a Vi diz que vai ficar do meu lado durante todos os dois meses.

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Vejo um bombeiro, não enxergo direito, as coisas estão embaçadas. Procuro meus óculos, minha cabeça dói. Fecho os olhos para descansar um pouco.

3 comentários:

  1. Simplesmente.. muito bom texto, gostei muito de encontrar mais alguém que goste de escrever, foram alguns blogs apenas.. conheci esse por um texto seu "Amor e outras delícias" no site ONE, e achei muito interessante. Parabéns, que continue a escrever assim

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    1. Obrigado! Vi seu comentário no ONE, então, obrigado outra vez! O blog andou meio parado este mês, mas estou retomando atividades, caso tenha interesse (:

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  2. realmente teve um intervalo de tempo até voltar a escrever não é, rs.

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