sexta-feira, 25 de janeiro de 2013

O grito do aço - Os olhos de paz | Parte 02.



O couro encharcado da armadura chia a cada movimento, com as mãos ele protege os olhos da água que cai, imóvel, atento ao que acontece, a chuva pesada dificulta a visão do tecido azul, é necessário precisão, um descuido pode por a vida de todos em risco, por trás de seus ombros dezenas de homens produzem uma sinfonia de sons, do metálico choque das espadas ao envergar dos arcos, o ataque é eminente. Duzentos metros os separam da cidade, entretanto o véu imposto pela chuva se mostra um desafio mesmo aos melhores olhos dos melhores dentre aqueles homens. A ansiedade cresce, o nervosismo se espalha, alguns perguntam se os batedores estão mortos, não é possível ouvir o bardo, apenas o som da água açoitando o solo e as folhas e galhos das árvores. Por um segundo brilha o céu, um raio acende o ar acima de suas cabeças e ilumina um homem, ao longe, que acena de forma ritmada algo azul. Todos aguardam o aval de Dorian, pares e mais pares de olhos cravados no braço levantado do homem. Ele avalia, quer ter certeza, sua mão aponta para a terra, eles avançam. O chão treme sob seus pés, sua ira é muda, o silêncio é um aliado.

*****

O deus que favorece a batalha prega peças ao esconder o bardo daqueles sob as quase invisíveis árvores próximas das montanhas. Enquanto Aegir balança o tecido veio do céu um clarão, seu som ecoou sob a forma de passos que fizeram a terra sob seus pés tremer. Por um segundo o medo lhe gela a alma, ao seu lado outros oito sentem a mesma sensação. A estratégia de eliminar os guardas em cidades pequenas já foi utilizada muitas vezes, em igual número ele presenciou o ataque fulminante que a sucede, em todas, por este pequeno instante, o medo tomou seu coração, seus instintos mais básicos berram para que as pernas corram, o perigo é evidente mesmo para os aliados, para aqueles que sabem o que virá e gozam da proteção da amizade. Ao povo desta cidade não resta qualquer esperança.

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Não deixem vivalma!”, gritou Dorian. “Pela glória, pela honra, que o solo trague o sangue de nossos inimigos como sacrifício! Tomem tudo o que for nosso, o ouro, a prata, os panos, as mulheres, os louros da vitória! Não ousem tocar na miséria e desesperança, pois estes pertencem aqueles que aqui vivem!!

O descampado entre a floresta e a cidade logo é vencido, alcançam os muros, Aegir os segue tocando, agora, com seu alaúde, cantando épicos de outras batalhas, lembrando aos homens de suas aventuras, batalhas e prêmios, dos batalhões destruídos, das vilas incendiadas, das belas donzelas seduzidas, das belas donzelas convencidas a serem seduzidas. Uma vez a tempestade é aliada, as ruas barrentas estão desertas, música e risos são ouvidos no interior das casas. Assim agem estes homens, primeiro os lares, deixem os bêbados e príncipes para o final, destruam as famílias, matem os homens, tomem as armas. Estas são as ordens de Dorian, assim é feito. Dividem-se em grupos de cinquenta e espalham o terror. Portas são derrubadas, o riso roubado dá lugar à surpresa e, logo, ao medo e ao desespero, porém ainda é cedo, o inferno apenas teve início para estes fracos seres humanos, para as crianças, que serão vendidas como escravas, para as mulheres, que saciarão as vontades destes homens a tanto afastados de suas esposas, dos velhos, homens e qualquer outro que se mostrar indócil, que em breve terão lugar especial na posse de Karnak por Dorian. O choro e os gritos logo tomam toda a cidade, em alguns pontos é possível ver o clarão do fogo, homens saem de bares trocando as pernas, têm a cabeça extirpada do corpo antes de saberem qual perna é a esquerda, igrejas são trancadas, clérigos assam no altar em chamas. As lufadas de ar quente aquecem Aidil, o sangue de seus inimigos esfria rápido demais, seca e deixa o aroma férreo por todo seu corpo. Junto de cinco outros ele derruba a porta de um casebre, desvia do golpe de foice do morador e no mesmo movimento lhe apresenta Beatriz, sua espada, herdada de seu pai, que a herdou de seu avô, que provavelmente a roubou de um nobre qualquer, o homem se contorce no chão até receber o golpe final que lhe atravessa o crânio. Logo ao lado a viúva tenta proteger os dois filhos sob os braços, ela olha em desespero para o homem alto coberto de sangue, cabelos castanhos empapados com a vida de muitos dos vizinhos, ele avança, a criança grita de pavor, a mulher o encara, os olhos verdes inundados de desespero. Aidil não fica indiferente à cena, ele sorri.

Dorian é um líder sábio, sabe que seus subordinados têm grande capacidade de guerrear, ao mesmo tempo em que tem ciência de sua inaptidão para as sutilezas da arte da guerra, as quais ele utiliza em campanha. Tal característica fez de Dorian um líder como nunca antes houve, nascido fazendeiro rapidamente se tornou guerreiro, fez fama, ascendeu até o topo, desafiou o antigo general, tudo isto antes de seus vinte anos. Cada batalha o tornou mais forte, aprendeu com os inimigos, e foram muitos professores, hoje, mais de quinze anos passados, é um soldado maduro, letal, poupa a vida de seus homens em batalha, procura agir antes pelo intelecto, para, depois, com maior aproveitamento, utilizar o poder militar, todavia sabe que para reinar precisa mostrar, acima de tudo, força. Seus homens aplaudem suas vitórias, a glória conquistada por seu povo, a riqueza, todavia é necessário mostrar que ele, Dorian, é razão para aquilo, que seu braço forte os guia e rege o modo como a roda da fortuna os favorece. Assim, ele caminha em direção ao príncipe e sua guarda, irá tomar aquela cidade com as próprias mãos. Com a espada ainda imaculada ele avança, em meio aos berros de dor e ódio, para o prédio central, onde vive o príncipe e estão os alojamentos dos mercenários, o local mais seguro e de difícil acesso da cidade, sua lâmina não aceita o sangue de agricultores, prostitutas ou comerciantes, mães ou heróis de ocasião. Ele ri ao lembrar a história de Aidil sobre a espada do avô, a sua, entretanto, é diferente. Brenda foi feita com as coroas dos nobres derrotados desde tempos remotos, nem sempre ela mediu um metro e cinquenta e cinco, cada reino destruído, uma nova coroa anexada, uma forjadura se fazia necessária. Do alvo, do prédio central, ecoa um sino, é o alarme. O fogo trepida ao fundo, a imagem de Dorian é assustadora, com a enorme espada em mãos, sem demostrar dúvida, sem escudo, sem defesa, sem necessidade de uma, passos firmes em direção à construção, gritos se fazem ouvir por todo seu caminho e atrás das colunas de fogo, é o arauto da destruição, um deus encarnado, sua armadura de cota de cota de malha iluminada pelos incêndios parece em brasa, viva, as sombras em seu rosto afugentam a coragem do inimigo, sua espada é puro fogo. Este é Dorian, este é o chefe e general dos povos da planície de Ebene. Este é o novo senhor de Karnak.

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O vinho desce suave, uma das melhores safras dos últimos anos, cada gole um novo deleite, no chão forrado por finos tapetes e macias almofadas, Anderson Flyman, príncipe e homem mais rico de Karnak grita com sua esposa. “Mais vinho, mulher! Esta chuva maldita estragou nosso joguinho ao ar livre, então só resta beber, hahahahaha!” Resignada, Karina, serve mais vinho para o marido. “Todos, vamos, o vinho é o bem maior de um homem, brindemos à chuva que nos trancou em casa e aos raios que assustam nossas crianças!” concluiu. “Que bela cidade.” disse Oldenor, um velho mercador de Nelas, reino vizinho, enquanto mostrava para Flyman alguns contratos de interesse mútuo, “Como pode ver, há grande possibilidade de lucro fácil, vamos ficar ainda mais ricos à custa daqueles agricultores estúpidos e...” dizia o comerciante ao ser interrompido pelo som de um sino. “É o alarme! Verifiquem o que há de errado, espero que não seja outro bêbado.” ordenou o príncipe. Houve movimentação, Karina recolheu as pesadas cortinas que cobriam as janelas e um grito de horror tomou todo o cômodo ricamente enfeitado. O prédio do príncipe é localizado em uma pequena elevação na parte central da cidade, no meio de um jardim circular de aproximadamente cinquenta metros de raio, porém, este jardim, no momento, os separava apenas dos escombros escaldantes do que já fora Karnak. A guarda corre ao príncipe “Senhor, a tempestade abafou os sons, não sabemos bem o que aconteceu, o certo é que estamos cercados, bárbaros destruíam e saquearam a cidade, temos apenas dez homens armados dentro deste edifício contra mais de duzentos inimigos.” Os corações na sala pesaram, lá fora um mar de labaredas dançava com o vento. O pânico toma conta de todos os presentes. “O que devemos fazer, senhor?”, “Quais suas ordens?” perguntavam. “Cortem a língua do nosso ilustre visitante, façam com que ele durma e não o machuquem no processo.” respondeu Flyman. “Estas louco, homem? Sabe quem sou? Tenho posses que poderiam comprar esta cidadezinha dez vezes!” se irritou Oldenor. “Isto é de fato impressionante, caro amigo, porém, no momento, eu tenho dez soldados a mais do que você. Rápido, guardas, façam o que foi ordenado. Temos apenas alguns minutos.

Do lado de fora um homem, seguido por cerca de trinta outros, anda calmamente pelo caminho pavimentado até a entrada do prédio, sua espada enorme em uma das mãos, os olhos brilhando como uma fera.

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