sábado, 3 de dezembro de 2016

Sob a Lua de Ragnar | Cidade de Heróis | Parte 1

VOLUME I - SOB A LUA DE RAGNAR

Capítulo 1: Cidade de Heróis



-Hahahaha! Somos o bando mais pobre da cidade, é certo! - riu Erudir.
-Observação vulgar e desnecessária, elfo. Acabamos de chegar na cidade, nossos recursos estão escassos, é apenas o início de nossa jornada rumo à glória e à destruição da Tormenta! - reagiu Tomoe, vestindo apenas a parte inferior da armadura e sandálias de palha.
-Você é um pobretão, é um fato. Um de nós - Eld olhava para Tomoe e percebia o óbvio enquanto polia o escudo
O samurai olhava aturdido para o paladino, que sempre soturno, calado, abria a boca apenas para lhes jogar obviedades atrevidas, não conhecia seu lugar, sequer era da Ordem da Luz, um lugar de guerreiros honrados e nobres, sua ordem nem ao menos ficava no Reinado. Não expôs o que pensava, não seria delicado. Não que o servo de Khalmyr parecesse se importar.
-Costumes bárbaros o de vocês, comentando intimidades desta forma! - a naturalidade demonstrada por seus companheiros frente à miséria chocava Tomoe.
-Falem por vocês - disse Lili - estou fazendo um bom dinheiro na Feira e fora dela. Acho que vou comprar outro par de botas, vi uma linda feita de couro de lagarto-elétrico.
-Deixe-os em paz, Lili. O samurai tem seus costumes, devemos respeitar - Bain argumentou, surgindo do alto da escada - Tamu-ra tem seus modos, todos bastante interessantes, mas contrastantes com os nossos aqui. Ele já deve estar fazendo uma concessão razoável aceitando uma união conosco, especialmente com você, Lili, uma especialista do sexo feminino.
-Ele não gosta de mulher? - questionou Lili.
-A questão, creio, de fato, deve tangenciar o campo do afeto, todavia de forma alguma se resume a ele - Bain sorria, gostava de ser didático.
-Vai cagar carroça abaixo e lamber as rodas, Bain, fala igual gente - Lili disse, sorrindo de forma delicada.
Bain olhou para cima, não sabia a razão pela qual ainda tentava. Ao baixar os olhos viu ao lado do grupo um homem de cabelos castanho escuros, barriga proeminente e vestindo um avental surrado tentando repetidamente interromper a discussão do grupo. O sujeito parecia constrangido demais para fazer sua presença ser notada claramente, até que juntou forças e falou.
-Senhores e senhora, a questão cultural é comovente, mas como fica a conta da taverna? São duas moedas de ouro. Não sei quanto tempo pretendem ficar, mas dado o teor da conversa gostaria de um sinal agora…
-Está me chamando de caloteiro, plebeu? - Tomoe procurava a espada - Deveria pôr um fim nisto, aqui e agora! Seria meu direito!
-Não seria - Eld informou.
-Não executo plebeus por suas línguas, paladino. É meu direito, ou seria, mas abro mão, raras vezes a honra vale uma vida. E a situação não é uma delas - Tomoe olhava para o homem, olhos cerrados, o desgosto explícito.
O taverneiro deu alguns passos para trás, com medo do tamuriano de tronco nu, estava a costumado a lidar com encrenqueiros, porém aquele homem parecia diferente, ele agia por algum dispositivo moral razoável, cretino, pensou ele, mas razoável, acima da ladainha vomitada dia após dia na taverna pelos tipos mais diversos. Deu mais um passo, se afastando do grupo, e então ouviu alguns poucos tibares em seu bolso, todos de cobre, lembrou da família, do que lhes trazia seu sustento e soube o que fazer.
-Por favor, por favor, me perdoem, mas preciso saber se têm dinheiro para sua estadia, este é meu sustento. Tenho família e... – começou, sendo interrompido.
-Seria um crime utilizar os serviços e não pagar, faça sua parte Tomoe, já fizemos a nossa dormindo. Pague – sentenciou Eld, olhos plenos de justiça cravados no samurai.
-Você é a nossa carteira por enquanto, Tomoe, lamento por isso – Erudhir já não ria, apenas olhava para o homem com compaixão.
-Vós sois dos piores! Pagarei, pois é o devido e justo, é claro! Entretanto temos de arrumar novas fontes de renda, esta aqui – apontou para sua bolsa de ouro – mingua a olhos vistos – e entregou a quantia devida ao homem.
-Grato, senhores, desculpem qualquer inconveniente – e pedindo a permissão de todos, se afastou.
-Extorquindo pais de família, que vergonha – julgou Eld, o símbolo de Khalmyr no escudo e na alma.
Tomoe olhou para o paladino, tal afirmação usualmente levaria a um combate, mas ele se sentia exausto apenas de pensar na discussão que se seguiria antes de cruzarem armas. Girou os olhos e viu o clérigo de Allihanna olhando uma cozinheira trabalhando, parecia entretido com a mulher gorda e suada que preparava o desjejum, um pouco além Bain conversava com a halfling alguma coisa que ele não ouvia, ela penteava os cabelos negros de um jeito bonito, aparentemente ignorando o que o feiticeiro tentava dizer. Perseverança, pensou, perseverança. Aquele grupo incomum parecia confiável, apesar de seus modos terríveis, todos pareciam comprometidos e, em sua grande maioria, fortes. Vingaria seu senhor, sua família, seu reino, vingaria Arton.

*****

Gajan acordou cedo naquela manhã ainda sob o efeito da visita de seu mestre, sua voz fresca na memória, a alegria de ter o ouvido pronunciar seu nome, lhe chamar de aprendiz... Levantou da cama rígida, deu dois passos até a cômoda, onde lavou o rosto na bacia de água, trocou de roupa, vestiu calça, a camisa leve e uma jaqueta, quase um uniforme. Foi até a porta e a abriu, girou nos calcanhares e trancou o cômodo. Desceu os degraus de madeira velha que levavam ao andar inferior, na cozinha abocanhou um pedaço de pão com nozes do dia anterior, bebeu um pouco de chá frio, a menina iria chegar em uma hora. Lamentou por um segundo a iminente perda da garota, uma serva bastante competente, a casa era mantida tão limpa quanto desejava, o que era difícil. Afastou aqueles pensamentos da mente, o lamentar era uma ofensa ao mestre, as instruções foram claras. Na sala de pedra de decoração mínima um quadro de uma velha bem vestida, a quem chamava de mãe quando perguntado, enfeitava sozinho a parede, uma mesa de madeira escura com quatro cadeiras completava o lugar, não havia nada que chamasse a atenção. Seguiu pelo corredor até uma porta reforçada com ferro, abriu a fechadura pesada e desceu pela escada. No porão ascendeu dois lampiões e começou a trabalhar, retirando algumas pedras do chão, cavando a terra escura e úmida. Acumulou a terra em um canto, separou alguns pergaminhos e os deixou no chão, próximos ao entulho. Ouviu a porta da entrada dos fundos abrir com seu rangido característico.
-Olá – soou uma voz no andar de cima, era a garota.
Ela não deveria chegar tão cedo, só em cerca de trinta minutos, algo aconteceu. Já chegou atrasada mais de uma vez, cedo é a primeira, não está certo. Alguém descobriu? Foi enviada para averiguar as coisas sem levantar suspeitas. Alguém sabe de algo? O mestre disse que poderia acontecer, que alguém poderia desconfiar. Ela é uma isca. Não! Claro que não! Até ontem estava tudo bem, inexiste qualquer razão para agora ser de outro modo. Apenas pense, pense. Vá até ela e pergunte, como faz todo dia, seja simpático com a vermezinha, agradeça a Lena, a deusa nojenta da vida, faça parecer que é apenas um outro dia. Bateu as roupas, subiu a escada.

*****

Lili e suas botas novas guiavam o grupo Grande Feira adentro, Tomoe lhe pediu graciosamente, ainda na taverna, para encontrar a barraca de inscrições de esgrima, o elfo sorridente queria a de arco, ela não fazia ideia de onde ficavam, mas acharia. Caminhava de maneira confiante, como poucos halfling têm a capacidade de fazer no meio de uma multidão com o dobro de seu tamanho, esquivava dos desatentos, acertava os desavisados, seguia. Um bando de crianças passou correndo atrás de um goblin, ele tinha os olhos arregrados de medo, elas martelos de carne. Muitos ofereciam a chance de ganhar prêmios, do amor de uma donzela ao machado abençoado por Lena, que não poderia ferir ninguém, o que parecia um jeito bonito de dizer que não tinha fio. A procura durou cerca de vinte minutos, quando avistou uma grande placa onde se lia “Grande Torneio da Grande Feira de Malpetrim, Inscrições aqui”.
-É ali na frente, vocês dois sabem escrever?
-Pequena, todo samurai sabe escrever! – se irritou Tomoe.
-Sim, Lili, não haverá problemas, obrigado – agradeceu Erudhir, ainda incomodado com toda aquela gente ao redor.
-Certo, então peguem a fila e paguem a taxa, irei esperar com os outros ali perto da tenda do homem que cai na água – sorriu ela.
-Taxa? Mais dinheiro? – retrucou Tomoe, resignado. Olhou a bolsa já quase vazia de tibares, seu orgulho tamuriano secando uma lágrima que morreu antes de nascer.
Erudhir foi até o samurai, deu dois tapas em suas costas.
-As coisas vão melhorar, amigo, é hora de mostrar nosso potencial e quem sabe até ganhar algum ouro! – tentou aplacar a tristeza do jovem humano.
-Que Lin-Wu nos guie – disse Tomoe, balançando a cabeça.
Bain olhava para o homem sentado em uma tábua que ofendia aos transeuntes, especialmente os que compravam bolas de madeira para arremessar em um alvo à sua direita. O homem balançava as pernas no vazio sobre a água, enquanto um após o outro todos falhavam em lança-lo na tina de água abaixo. A situação ofendia a inteligência e a dignidade do aggelus, os humanos tinham seus encantos, mas este era um exemplo de como seu comportamento ainda era primitivo e vergonhoso em muitos aspectos, sabia que encontrara companheiros acima disto, que trilhavam um caminho mais razoável e digno. Olhou para o lado e viu Lili rindo, tomando lugar na fila para comprar bolas.
-Lili! – chamou Bain, chocado.
-Ah, nem vem, eu vou ganhar o prêmio, vou molhar aquele idiota e ainda acertar aquele moleque ali atrás com a primeira bola, o peste pisou em mim ontem – disse Lili, sem dar margem para uma conversa sobre o assunto.
-Acerte uma no homem que nos ofende, Lili – sugeriu Eld, como quem sugere justiça, honra e tudo o que é correto.
-Nossa, foi a coisa mais certa que você já disse desde que nos conhecemos! Acerto duas, a outra quando ele reclamar! – disse Lili, extasiada com a ideia – Ei, tudo bem você sugerir isso, não é contra alguma lei?
Eld fechou os olhos e virou de costas, pois a justiça imparcial era cega. Por dentro riu do som do homem gritando com a halfling, mais tarde faria penitência e não diria verdades cruas a respeito do feiticeiro, ficaria quite com seu deus.

*****

Após o cumprimento não ouvira mais a voz da menina, apenas o som de suas pequenas mãos limpando a mobília e varrendo o chão, os pequenos e leves pés caminhando pelo chão de pedra. Era uma menina bonita, um dia uma bela mulher, não, na verdade não, tal oportunidade não existiria. Uma pena, mas a beleza da meninice seria seu apogeu. Cuidadosamente subiu as escadas de pedra do porão, da porta olhou para fora, em direção ao corredor, discretamente, tentando manter o corpo oculto, a menina parecia trabalhar na sala. Lentamente alcançou o corredor e vislumbrou o cômodo onde estava a garota. Apenas ela, pequena, a cabeça alcançado a metade peito de um adulto, cabelos negros lisos até a metade das costas em trança, a pele avermelhada queimada do sol, usava um vestido azul puído, muito provavelmente herdado de irmãs mais velhas. Estava apenas limpando, como fazia em todos os dias de feira, tanta era a poeira que entrava pelas portas e janelas. Talvez um alarme falso, pensou.
-Menina – chamou.
Ela pulou assustada, olhou para trás e viu o homem parado na entrada da sala.
-Senhor, que susto! Desculpe pela hora! Mamãe veio para a cidade e vim na carroça! Foi bem mais rápido do que caminhar, espero que não seja um problema, senhor! - ela estava agitada, preocupada em ter ofendido de alguma forma o patrão.
Ele sabia que a mãe da menina vendia verduras da fazenda, era um motivo razoável e crível. Ela não tinha a barra do vestido empoeirado como de costume, fazia sentido.
-Claro que não, Laura, não há qualquer tipo de problema. Há pão com nozes na cozinha, fique à vontade, querida. Depois me encontre no porão, tenho uma pequena tarefa, lhe pagarei um extra por ela, certamente sua mãe irá apreciar – sorriu – Que Lena lhe ilumine o dia – a bile lhe subindo.
-O senhor é tão bom para mim, obrigada! Irei em logo, logo! – sorriu a jovem.
Ele caminhou até o porão, sem se preocupar em parecer furtivo desta vez, continuando a cavar. Na medida em que retirava a terra do buraco também suas preocupações sumiam, o mestre lhe dera a missão, a ordem, ele não errava, é claro que se houvesse gente bisbilhotando teria sido avisado, aquele tipo de teste não era útil ao seu senhor. Após alguns minutos havia tirado terra o suficiente. Organizou o lugar, fez alguns símbolos no chão com o líquido vermelho retirado de um frasco, o cheiro ferroso subiu. Foi até a bacia de água que trouxera ao porão, lavou o rosto e os braços, com um pano úmido tirou a terra acumulada nas roupas. Tirou então do bolso um pequeno tecido vermelho, havia cortado do braço esquerdo da poltrona em seu quarto, onde o mestre sentara e pousara as mãos. Levou o veludo aos lábios e beijou, sentiu o estômago pesado e cabeça leve.
-Senhor? - ecoou ao longe uma voz.
Ele aspirava o ar com violência, ressoando, queria que aquele aroma fizesse parte de seu corpo, de sua alma. Beijou o tecido, lambeu-o lentamente e com prazer. Sentia-se pecando sem realmente se importar, apenas queria... então ouviu.
-Desculpe, senhor? Quer que volte depois? – disse a garota, reticente, olhando para as costas do dono da casa.
Gajan guardou lentamente o tecido em seu bolso.
-Não, claro que não – tentava se recompor, ajeitava os cabelos com as mãos e controlava a respiração – Não há qualquer necessidade.
Menina nojenta, interrompera seu momento, garota maldita. Antes não iria apenas matá-la, agora iria faze-la sofrer. Iria arrancar toda a pele, furar os olhos e cortar a língua, iria trazer serpentes e lhes dar um banquete, ela iria gritar sem fazer sons, iria implorar para morrer.