O couro encharcado da armadura chia a cada movimento, com as
mãos ele protege os olhos da água que cai, imóvel, atento ao que acontece, a
chuva pesada dificulta a visão do tecido azul, é necessário precisão, um
descuido pode por a vida de todos em risco, por trás de seus ombros dezenas de
homens produzem uma sinfonia de sons, do metálico choque das espadas ao
envergar dos arcos, o ataque é eminente. Duzentos metros os separam da cidade,
entretanto o véu imposto pela chuva se mostra um desafio mesmo aos melhores
olhos dos melhores dentre aqueles homens. A ansiedade cresce, o nervosismo se
espalha, alguns perguntam se os batedores estão mortos, não é possível ouvir o
bardo, apenas o som da água açoitando o solo e as folhas e galhos das árvores.
Por um segundo brilha o céu, um raio acende o ar acima de suas cabeças e
ilumina um homem, ao longe, que acena de forma ritmada algo azul. Todos
aguardam o aval de Dorian, pares e mais pares de olhos cravados no braço
levantado do homem. Ele avalia, quer ter certeza, sua mão aponta para a terra,
eles avançam. O chão treme sob seus pés, sua ira é muda, o silêncio é um aliado.
*****
O deus que favorece a batalha prega peças ao esconder o
bardo daqueles sob as quase invisíveis árvores próximas das montanhas. Enquanto
Aegir balança o tecido veio do céu um clarão, seu som ecoou sob a forma de
passos que fizeram a terra sob seus pés tremer. Por um segundo o medo lhe gela
a alma, ao seu lado outros oito sentem a mesma sensação. A estratégia de
eliminar os guardas em cidades pequenas já foi utilizada muitas vezes, em igual
número ele presenciou o ataque fulminante que a sucede, em todas, por este
pequeno instante, o medo tomou seu coração, seus instintos mais básicos berram
para que as pernas corram, o perigo é evidente mesmo para os aliados, para
aqueles que sabem o que virá e gozam da proteção da amizade. Ao povo desta
cidade não resta qualquer esperança.
*****
“Não deixem vivalma!”,
gritou Dorian. “Pela glória, pela honra,
que o solo trague o sangue de nossos inimigos como sacrifício! Tomem tudo o que
for nosso, o ouro, a prata, os panos, as mulheres, os louros da vitória! Não
ousem tocar na miséria e desesperança, pois estes pertencem aqueles que aqui
vivem!!”
O descampado entre a floresta e a cidade logo é vencido,
alcançam os muros, Aegir os segue tocando, agora, com seu alaúde, cantando
épicos de outras batalhas, lembrando aos homens de suas aventuras, batalhas e
prêmios, dos batalhões destruídos, das vilas incendiadas, das belas donzelas
seduzidas, das belas donzelas convencidas a serem seduzidas. Uma vez a tempestade
é aliada, as ruas barrentas estão desertas, música e risos são ouvidos no
interior das casas. Assim agem estes homens, primeiro os lares, deixem os bêbados
e príncipes para o final, destruam as famílias, matem os homens, tomem as
armas. Estas são as ordens de Dorian, assim é feito. Dividem-se em grupos de
cinquenta e espalham o terror. Portas são derrubadas, o riso roubado dá lugar à
surpresa e, logo, ao medo e ao desespero, porém ainda é cedo, o inferno apenas teve
início para estes fracos seres humanos, para as crianças, que serão vendidas
como escravas, para as mulheres, que saciarão as vontades destes homens a tanto
afastados de suas esposas, dos velhos, homens e qualquer outro que se mostrar
indócil, que em breve terão lugar especial na posse de Karnak por Dorian. O
choro e os gritos logo tomam toda a cidade, em alguns pontos é possível ver o
clarão do fogo, homens saem de bares trocando as pernas, têm a cabeça extirpada
do corpo antes de saberem qual perna é a esquerda, igrejas são trancadas,
clérigos assam no altar em chamas. As lufadas de ar quente aquecem Aidil, o
sangue de seus inimigos esfria rápido demais, seca e deixa o aroma férreo por
todo seu corpo. Junto de cinco outros ele derruba a porta de um casebre, desvia
do golpe de foice do morador e no mesmo movimento lhe apresenta Beatriz, sua
espada, herdada de seu pai, que a herdou de seu avô, que provavelmente a roubou
de um nobre qualquer, o homem se contorce no chão até receber o golpe final que
lhe atravessa o crânio. Logo ao lado a viúva tenta proteger os dois filhos sob
os braços, ela olha em desespero para o homem alto coberto de sangue, cabelos
castanhos empapados com a vida de muitos dos vizinhos, ele avança, a criança
grita de pavor, a mulher o encara, os olhos verdes inundados de desespero.
Aidil não fica indiferente à cena, ele sorri.
Dorian é um líder sábio, sabe que seus subordinados têm
grande capacidade de guerrear, ao mesmo tempo em que tem ciência de sua
inaptidão para as sutilezas da arte da guerra, as quais ele utiliza em
campanha. Tal característica fez de Dorian um líder como nunca antes houve,
nascido fazendeiro rapidamente se tornou guerreiro, fez fama, ascendeu até o
topo, desafiou o antigo general, tudo isto antes de seus vinte anos. Cada
batalha o tornou mais forte, aprendeu com os inimigos, e foram muitos
professores, hoje, mais de quinze anos passados, é um soldado maduro, letal, poupa
a vida de seus homens em batalha, procura agir antes pelo intelecto, para,
depois, com maior aproveitamento, utilizar o poder militar, todavia sabe que
para reinar precisa mostrar, acima de tudo, força. Seus homens aplaudem suas
vitórias, a glória conquistada por seu povo, a riqueza, todavia é necessário
mostrar que ele, Dorian, é razão para aquilo, que seu braço forte os guia e
rege o modo como a roda da fortuna os favorece. Assim, ele caminha em direção
ao príncipe e sua guarda, irá tomar aquela cidade com as próprias mãos. Com a
espada ainda imaculada ele avança, em meio aos berros de dor e ódio, para o
prédio central, onde vive o príncipe e estão os alojamentos dos mercenários, o
local mais seguro e de difícil acesso da cidade, sua lâmina não aceita o sangue
de agricultores, prostitutas ou comerciantes, mães ou heróis de ocasião. Ele ri
ao lembrar a história de Aidil sobre a espada do avô, a sua, entretanto, é
diferente. Brenda foi feita com as coroas dos nobres derrotados desde tempos
remotos, nem sempre ela mediu um metro e cinquenta e cinco, cada reino
destruído, uma nova coroa anexada, uma forjadura se fazia necessária. Do alvo,
do prédio central, ecoa um sino, é o alarme. O fogo trepida ao fundo, a imagem
de Dorian é assustadora, com a enorme espada em mãos, sem demostrar dúvida, sem
escudo, sem defesa, sem necessidade de uma, passos firmes em direção à
construção, gritos se fazem ouvir por todo seu caminho e atrás das colunas de
fogo, é o arauto da destruição, um deus encarnado, sua armadura de cota de cota
de malha iluminada pelos incêndios parece em brasa, viva, as sombras em seu
rosto afugentam a coragem do inimigo, sua espada é puro fogo. Este é Dorian,
este é o chefe e general dos povos da planície de Ebene. Este é o novo senhor
de Karnak.
*****
O vinho desce suave, uma das melhores safras dos últimos
anos, cada gole um novo deleite, no chão forrado por finos tapetes e macias
almofadas, Anderson Flyman, príncipe e homem mais rico de Karnak grita com sua
esposa. “Mais vinho, mulher! Esta chuva
maldita estragou nosso joguinho ao ar livre, então só resta beber, hahahahaha!”
Resignada, Karina, serve mais vinho para o marido. “Todos, vamos, o vinho é o bem maior de um homem,
brindemos à chuva que nos trancou em casa e aos raios que assustam nossas
crianças!” concluiu. “Que bela cidade.”
disse Oldenor, um velho mercador de Nelas, reino vizinho, enquanto mostrava
para Flyman alguns contratos de interesse mútuo, “Como pode ver, há grande possibilidade de lucro fácil, vamos ficar
ainda mais ricos à custa daqueles agricultores estúpidos e...” dizia o
comerciante ao ser interrompido pelo som de um sino. “É o alarme! Verifiquem o que há de errado, espero que não seja outro
bêbado.” ordenou o príncipe. Houve movimentação, Karina recolheu as pesadas
cortinas que cobriam as janelas e um grito de horror tomou todo o cômodo
ricamente enfeitado. O prédio do príncipe é localizado em uma pequena elevação
na parte central da cidade, no meio de um jardim circular de aproximadamente
cinquenta metros de raio, porém, este jardim, no momento, os separava apenas
dos escombros escaldantes do que já fora Karnak. A guarda corre ao príncipe “Senhor, a tempestade abafou os sons, não
sabemos bem o que aconteceu, o certo é que estamos cercados, bárbaros destruíam
e saquearam a cidade, temos apenas dez homens armados dentro deste edifício
contra mais de duzentos inimigos.” Os corações na sala pesaram, lá fora um
mar de labaredas dançava com o vento. O pânico toma conta de todos os
presentes. “O que devemos fazer, senhor?”,
“Quais suas ordens?” perguntavam. “Cortem a língua do nosso ilustre visitante,
façam com que ele durma e não o machuquem no processo.” respondeu Flyman. “Estas louco, homem? Sabe quem sou? Tenho
posses que poderiam comprar esta cidadezinha dez vezes!” se irritou
Oldenor. “Isto é de fato impressionante,
caro amigo, porém, no momento, eu tenho dez soldados a mais do que você.
Rápido, guardas, façam o que foi ordenado. Temos apenas alguns minutos.”
Do lado de fora um homem, seguido por cerca de trinta
outros, anda calmamente pelo caminho pavimentado até a entrada do prédio, sua
espada enorme em uma das mãos, os olhos brilhando como uma fera.