Há dias o leito de Aidil é a relva gelada das planícies que,
sem perguntas, o aceita e oferece aconchego para o corpo cansado. Deitado,
depois de marchar por um dia inteiro, tendo apenas breves paradas para comer e
descansar, ouve os insetos voando, mata algo lhe que subia o braço esquerdo e
esfrega as pernas doloridas. O ar gelado o incomoda, já não é mais um jovem,
as articulações doem, os músculos se vingam das agressões pretéritas, ele
ajeita as peles novamente enquanto amaldiçoa alguém que não está ali. Olha
então para o alto e observa uma nuvem gigantesca que cobre gradativamente o céu
noturno, estrela por estrela, insaciável, sempre em frente. Opondo-se a ela está
a lua crescente, como um general, firmemente postada orientando seu exército
que sucumbe, um a um, perante aquela sombra que tudo consume. Entretanto, ela
não se move, não recua, não avança, apenas espera ao lado de seus homens o
sussurro do destino último de cada soldado, aceita sua sina e seu brilho parece,
agora, mais poderoso do que nunca. Ele sorri, há beleza naquilo, há honra, Aidil
dormiu satisfeito, amanhã a natureza seguiria seu curso, assim como no céu
escuro. Ao seu lado pouco mais de duas centenas de homens dormem acompanhados da
mesma relva, da mesma certeza, recuperando forças para o dia seguinte. Acima
deles o embate continua.
A noite ainda lança seus tentáculos sobre o mundo, porém todos
marcham em longas filas, enquanto se aproximam daquilo que os motivou a
abandonar seus lares e famílias. Mastigam pedaços de carne ou pão, as botas
pesadas marcando o campo, o som das espadas e escudos ecoando no descampado. Um
riso aqui, uma maldição ali, poucos falam, a brisa fria os deixa mais
inclinados a reflexões pessoais do que conversas. O sol nasceu e o silêncio se
manteve. Caminham até que o fim da planície, a sua frente uma montanha, Aidil
faz sinal para que todos subam. No céu uma nuvem escura cobre tudo, tornando o
sol pouco mais que uma lembrança, trovões fazem parecer que gigantes duelam e
atiram pedras uns nos outros, o vento frio lhes corta a pele e algumas gotas de
chuva marcam a rocha. Chegando ao cume podem ver seu objetivo no fundo do vale:
Karnak. Uma pequena cidade sem tradição guerreira, localizada no meio de uma
grande rota comercial, um alvo fácil, é possível sentir o cheiro do ouro, das
sedas e das mulheres. Entre os homens se inicia uma agitação, a presa foi
avistada, atacar é mais que um desejo, se faz necessidade. É quando um homem de
olhos escuros e calmos, portando uma espada com não menos que um metro e meio,
sem escudo, se posta à frente do grupo e pede a palavra. Seu nome é Dorian,
líder e general do grupo.
*****
“Diante de nós está a razão pela qual passamos dor e frio, o
motivo pelo qual ficamos sem nossas mulheres!” Ele faz uma pausa para que os
homens possam rir. “Aidil, talvez para ti esta não seja uma situação ruim, não
é? Já almocei em tua mesa e comi o que Olga prepara, todos podem ver teu
sorriso por estar aqui!” Risos irrompem. “Posso ver nos olhos de cada um o fogo
que nos move! Por dias marchamos, enfrentamos com nossos corpos as destemperes
da natureza, punidos pelo sol, açoitados pelo vento, mas aqui estamos. O chão
frio nos foi leito, sem o calor de nossas mulheres para acalentar a dor, sem
nossos filhos para abraçar, mas aqui estamos.” Urros de aprovação são
silenciados por sinais de Aidil e Dorian. “Agora, do outro lado desta montanha
está Karnak, nosso butim nos espera, nosso espólio merecido está próximo! Vamos
pegar o que é nosso, mas com cautela, em silêncio, não quero dar más notícia
para a família de nenhum dos meus amigos aqui presentes. Que os deuses nos
favoreçam, que o sangue de nossos inimigos sacie a sede de nossas espadas, que
lave o chão e sacie Gundör, que ele nos faça fortes!”
Todos levantam os braços, espadas em punho apontando para
céu, sem gritos, sem urros, Dorian acordou o guerreiro dentro de cada um
daqueles homens, entretanto isto não os fará dar ao inimigo a chance de os ouvir.
A descida é difícil, pedras soltas, a chuva tornou tudo escorregadio, há lama,
a jornada se torna lenta. Alcançam o pé da montanha e procuram abrigo entre as
sombras das árvores do vale, o dia nublado é uma vantagem. Aguardam, muitas
vezes pilharam outras cidades, sabem como proceder, por isso esperam por
Aegir. Podem o avistar ao longe, caminhando com uma flauta, tocando e dançando
para os poucos guardas visíveis da cidade. Aegir é um homem competente no que
faz, os guardas olham apenas para ele, encostam suas lanças no muro e batem
com as mãos nas coxas enquanto ele os entretém cantando, tocando, fazendo
piadas, fazendo perguntas. Ele arranca risadas e informações com o poder de sua
lábia, com a graça de sua dança, com notas dignas do menestrel de um rei. De
repente uma cambalhota, é o sinal, não há outros guardas próximos. Avançam dois
grupos de quatro homens, evitam correr, o solo está molhado e escorregadio, o
som de seus passos nas poças pode os entregar. Ainda assim seguem, cautelosos
flanqueando o grupo de cinco homens que ri da excelente performance do bardo,
que, pela primeira vez, desafina terrivelmente sua flauta, é o sinal. Flechas
voam de encontro aos cincos homens, quatro caem mortos. O último tem a coxa
atravessada por um dos projéteis, a dor é lacerante, entretanto seus gritos se
afogam no próprio sangue, é possível ouvir um estranho som que vaza pelo corte
em sua garganta enquanto Aegir limpa a adaga. Ambos os grupos chegam ao portão,
afastam os corpos da entrada. O bardo relata que existem pouco mais de quarenta
mercenários contratados dentro da cidade, que só se apresentam quando o alarme
soa, se ocupando com outras atividades que lhes geram renda enquanto sua
presença não é requerida, os demais são aldeões, agricultores e comerciantes,
mulheres e crianças. O vento ganha velocidade, a chuva se torna pesada, pingos
grossos encharcam os nove homens, raios rasgam o céu. A tempestade abafaria
qualquer som da invasão, talvez até gritos mais distantes. Gundör os favorecia,
devem agora honrar a dádiva, o solo exige o sangue dos que vivem dentro destes
portões.
Aegir faz surgir um pano azul. É o sinal.
Tarso. Adorei o seu texto. Talvez por considerar o passado mais instigante do que a atualidade corriqueira e entediante, ou talvez por influência da escrita do meu próprio filho, esse é, sem dúvida, o gênero que mais aprecio. A sua escrita flui com naturalidade e aguça a curiosidade. Estou à espera da parte 2.
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