terça-feira, 10 de janeiro de 2017

Sob a Lua de Ragnar | Cidade de Heróis | Parte 3

VOLUME I - SOB A LUA DE RAGNAR

Capítulo 1: Cidade de Heróis




Elfos eram, até poucos anos atrás, grandes entusiastas das artes, referência, suas cidades eram as mais belas, seus poetas os mais eloquentes, a música era sempre mágica, com tons arcanos e divinos. Lennorien fora o ápice da cultura élfica, mesmo membros da raça se admirava com suas belezas, sempre que a avistavam. Hoje não há muitos homens ou mulheres que tragam na lembrança as imagens, sons e cheiros daquela maravilha dentre as maravilhas produzidas pelos filhos de Glórienn. Erudhir Stalkingwolf era um deles. Após a queda da nação élfica ele rejeitou a deusa de seu povo e passou a adorar Allihanna, uma mãe calorosa, forte e presente. A deusa da natureza retribuiu o amor do elfo e lhe garantiu poderes, a habilidade de curar o mundo, interagir com a vida ao seu redor, de aquecer o próprio coração e seguir vivendo, deixando para trás tudo o que não mais vivia e que lhe causava um sentimento novo, ao menos para um elfo: saudade. Os elfos sempre lidaram de forma racional e equilibrada com a perda, entendiam que a morte vinha quando cessava a beleza da existência, desta existência. Seus amados embelezariam o mundo de Glórienn, a mãe de todos. Erudhir já não pensava assim. Então, a saudade.
Agora, todavia, o clérigo de Allihanna batia palmas e no ritmo da melodia de um bardo, festejando os resultados financeiros dos jogos dos quais ele e Tomoe participaram. Nenhum dos dois ganhou nada. Lili ganhou. Lucro suficiente para pagar a taverna, o pouso para a noite, a comida, estava ótimo. Tomoe parecia aliviado pela primeira vez desde a chegada a Malpetrim, fácil perceber que não estava acostumado a viver com pouco ou nenhum dinheiro, ao lado do elfo batia com a palma da mão direita na própria coxa, acompanhando o bardo, sorriso no rosto limpo e marcado pelo sol da viagem. No meio da turba embebida em cerveja barata e vinho de procedência duvidosa, Lili. A halfling aproveitava para aumentar o lucro do dia, aliviando descuidados do peso do ouro e da prata. Na mesma posição durante a última hora e meia, sentado em uma mesa isolada próxima da entrada, olhos atentos ao crime, olhos enganados por Lili e ao menos outros três ladinos que trabalhavam ali naquela noite, Eld observava o ambiente. Bain, em uma cadeira no andar superior observava com curiosidade, bebendo chá, sendo alvo de chacotas de jovens incautos e pouco inteligentes. O feiticeiro levantou e seguiu para o quarto, onde pretendia terminar a leitura. A ida ao quarto foi, entretanto, interrompida pela visão de duas pessoas abordando o samurai. Um homem de meia idade, cabelos castanhos circundando uma lustrosa careca no alto da cabeça e bigode vasto, barriga proeminente, costeletas até onde se poderia ir uma costeleta, camisa de algodão de qualidade, bem cuidada, mas gasta, calças de couro mais apertadas do que a prudência sugeriria, botas de viagem. Ao seu lado uma criança de aproximadamente dez anos, pele queimada do sol, magricela, cabelos castanhos claros emaranhados e sujos, nariz arredondado, sujo e ranhento, uma criança feliz, normal e carregando uma espada de madeira. Bain desceu até onde estavam o tamuriano e o clérigo, queria ouvir.
-Boa noite, amigo, meu nome é Miguel, este é meu filho, Pedro. Gostaríamos de conversar sobre negócios com os senhores, é uma boa hora? – indagou o homem, a criança ficando quieta de forma absolutamente normal e suspeita, como toda criança.
Tomoe olhava os homens, fazia força para lágrimas de alegria não verterem e rolarem rosto abaixo.
-Oh, boa noite! Boa noite, nobre senhor! Não há qualquer impedimento, por favor, senta-te à mesa conosco! – conseguiu dizer Tomoe, levantando e apontando uma cadeira vaga ao homem.
Atento, Eld levantou e caminhou até a mesa onde a conversa se iniciava. Chegou junto com Bain, que puxava uma cadeira. O feiticeiro, ao ver o paladino, o cumprimentou. Eld agradeceu e sentou-se. Bain olhou para ele, incrédulo. Puxou outra cadeira.
-Vejo que todos estão aqui, que bom – disse o senhor.
-Agora estamos – uma voz soou ao lado do homem.
Miguel olhou para o lado e viu uma halfling usando botas de couro, longos cabelos negros e uma generosa bolsa que parecia conter dinheiro.
-Estamos todos aqui agora, senhor, qual o assunto? – perguntou Erudhir, curioso com o surgimento dos companheiros.
-Sim, sim, então estavam todos juntos nos jogos, são uma equipe? Não havia notado alguns de vocês, que bom, que bom, são mais completos do que imaginei – Miguel olhava para a halfling enquanto falava, ainda intrigado com seu papel no grupo – Bom, o assunto que me traz aqui diz respeito a todos vocês. Gostaria de contratar o grupo para uma escolta.
-Quais os termos da pro... – começou Lili.
-SIM – encerrou Tomoe.
-Perdão? – pai e filho, um pouco assustados pelo grito repentino, observavam, olhos arregalados, o samurai.
-Perdão. Sim, aceitamos a honra de proteger vosso grupo até o local a ser combinado – Tomoe sentenciou.
-Tomoe, veja bem – começou, novamente, Lili.
-Já está decido.
-Como é que... – Lili tentou outra vez.
-Quando começamos? - Tomoe perguntou para Miguel.
-UHHHH, OMI!!! - explodiu Lili - Cê tá é louco de falar assim comigo! Me interrompe outra vez pra ver se não arranco essa tua cabeça! Cala essa boca, deixa de omice e ouve a especialista em contratos!
-Lili! - interviu Bain.
-Quié, hein? - retrucou Lili, o feiticeiro só observava.
-Mandaste-me cala... - começou Tomoe.
-XIU, OMI! Não me faz pegar a adaga!
Miguel e o menino olhavam, um tanto assustados, a pequena mulher silenciar o samurai, que ainda protestava, mas parecia um pouco aturdido e confuso, talvez até intimidado.
-Senhor, Miguel – sorriu Lili – O samurai faz parte dos músculos do grupo, eu sou o cérebro. Todo e qualquer acerto passa por mim, ele no máximo opina. Certo, queridos? – ela olhava para o restante do grupo, todos meneavam as cabeças entre surpresos e assustados – Então, qual é a missão exatamente? E que rapazinho esperto e amável é este, seu filho?
Pai e filho se entreolharam, que menina simpática. Miguel ficou satisfeito de ver uma garota com tino comercial tão apurado, então começou as explicações.
-Claro, vamos aos detalhes. Primeiro, não somos um grupo grande, apenas eu e este rapaz aqui, tínhamos uma escolta até ontem, mas nos abandonaram por um pagamento maior. A proteção seria para eu, meu filho, minha carroça e meus dois trobos. E o trajeto é daqui até Bek’ground, uma pequena cidade em Deheon, próxima da fronteira com Bielefeld. Sabe, normalmente não venderíamos nossas coisas tão longe, mas o menino queria muito ver a Feira.
-Proteção para duas pessoas, certo – Lili calculava.
Tomoe a honra ferida, observava os dois. Aquela pequena mulher bonita e atrevida, como ousava. Ele encerraria a disputa. Pensou em um valor alto, que possibilitaria uma discussão, uma negociação. Lembrou-se da empolgação da halfling com a aposta, o dinheiro fora de Tamu-ra e Ni-Tamu-ra fazia menos sentido.
-Trinta moedas de ouro! – disse Tomoe.
-Fechado! – se adiantou Miguel.
Lili era puro ódio, ressentimento e instinto assassino.

*****

A noite já ia alta, os sons da mata povoavam o ar ao redor, árvores centenárias, lares de pássaros e roedores, todos observavam a figura silenciosa, abaixo Gajan caminhava. Ia pela trilha apagada, tocha na mão esquerda, o cheiro de óleo incomodava, avançava devagar, tentando não chamar muita atenção, o que era difícil, o solo era esburacado, seus sapatos feitos para a cidade tornavam a travessia sofrível. Ele não ligava para a dor. Sua mente estava agitada, aquele era um passo decisivo para os planos do Mestre, não iria cometer erros, tudo seria perfeito. Por mais trinta minutos caminhou, fez voltas, chegou então a uma pequena clareira, uma fogueira queimava, sobre ela nacos de carne ainda úmidos de sangue, junto do fogo um lobo rosnou para o intruso. Das sombras emergiu uma criatura pequena, pouco menos de um metro, traços reptilianos, diria um observador desatento, dracônicos um mais informado.
-Olá, seinhor, nois tar pronto, quando ser? – a criatura falava com uma voz fina, parecia uma criança.
-Prontos desde antis de antis de antis de ontem, seinhor bom – outra criatura saiu da escuridão, o rosto marcado por agressões pretéritas, uma cicatriz tomando o lugar do olho direito.
-Sim, estamos prontos, a criança deve ser capturada amanhã, tudo já foi arranjado. Ele costuma se aproximar da orla da floresta, toda manhã é assim – o cheiro, aparência e existência das criaturas e enojava, teve de controlar o estômago.
-Claro, claro, seinhor da cidade, nós acha ele, prendi, arranha um poco pra educá direito e tenta deixá o lobo longe, ele gosta de filhoti humano hihihi – o maior deles riu de um jeito desagradável.
-Tentar não, deixem o lobo longe dele! Qualquer dano grave e vocês não estarão aqui para a próxima refeição! – Gajan olhou cada um do bando, que ele sequer sabia quantos eram, nos olhos, ao menos os que estavam visíveis – Amanhã, na orla, o menino. Deixem o pai vivo, preciso dele vivo e não muito machucado, batam só o suficiente, nada de arrancar pedaços, não quero ele morto por perder sangue!
-Qui chato, qui ruim assim, o seinhor da cidade e da bota não deixa fazer nada – uma voz da escuridão reclamou.
-Dou ouro. Façam como falei e terão ouro. E carne seca. E – ele respirou fundo – carcaça de boi fresquinha.
Os kobolds vibraram, uma carcaça inteira, sem miséria, quase cheia de carne, nada de coelhos, de esquilos, dias novos, uma carcaça quase nova.
Gajan deixou as pequenas criaturas comemorando, tinha alguns preparativos por fazer e a caminhada era longa.

*****

Tomoe tinha um olhar satisfeito. Miguel e Pedro já dormiam, Erudhir caminhava na rua, procurando uma boa árvore para encostar e passar a noite, Bain após ver a cara de Lili foi para seu quarto e trancou a porta, Eld resolvera ir dormir, pois a discussão que se seguiria não lhe interessava, apenas a justiça. No quarto, Tomoe observava Lili, que o acompanhara sem convite, entrar, fechar a porta e então o olhar com uma cara irritada. Os dois se encaravam há quase cinco minutos.
-Cara, tu só pode ser burro – Lili abriu a conversa.
-Veja como fala, pequena! Sou um samurai! – Tomoe não entendia a irritação da halfling, tão pouco a dificuldade em seguir os protocolos sociais.
-Velho, trinta moedas? Ele pagaria o dobro, talvez o triplo! A gente vai atravessar a porra do Reinado! Eu devia dar com a mão nessa tua cara! – Lili tentara aplicar a bofetada, de fato, logo após Tomoe fechar o acordo, mas ele levantara rápido demais.
-Menina, olhe...
-QUEM É MENINA AQUI? Eu sou mais velha que você, moleque, me respeita! Agora cê vai ouvir! Senta ai e fica quieto! – a halflling urrava, Tomoe sentou, intimidado, querendo diminuir a comoção e, também, um pouco curioso, estranhamente, de forma positiva – É o seguinte, a gente é um grupo, entende? Uma droga de grupo! Quando você foi lá apanhar do elfo, eu joguei pedra nele? Eu botei graxa na espada dele? Não! Devia? Devia! Mas não fiz nada disso, porque o guerreiro é você, cara! Agora, eu sou a negociadora, quando é pra conversar você chama o paladino? Não. Você conversa? Não! Sabe por qual razão? Porque ele não fala e você fala mal. Eu falo bem, você fala mal! Você é bom em bater nos outros, apesar de ter que melhorar, eu sou boa em conversar, não ser vista e em outras coisas. Pra isso, você me chama, pra bater nos outros, chamo você. Estamos acertados?
-Hm, ã, sim – Tomoe não conseguia argumentar, ela era boa.
-Então boa noite – e saiu batendo a porta.

quarta-feira, 4 de janeiro de 2017

Sob a Lua de Ragnar | Cidade de Heróis | Parte 2

VOLUME I - SOB A LUA DE RAGNAR

Capítulo 1: Cidade de Heróis




A guarda de Malpetrim ainda procurava a garota que havia agredido os comerciantes com bolas de madeira, um ou outro passando apressado, a descrição era de uma criança com olhar cínico e maquiavélico, uma mulher pequena, lembrava uma menina de 12 anos. Além disto, uma halfling de botas, onde já se vira aquilo.
-Você caiu com um elfo na primeira luta, Tomoe, é só olhar a chave na banca de apostas! – Lili estava irritada.
-Não vou entrar um uma banca de apostas – disse o ofendido samurai.
-São apostas legais, Tomoe. Não tem problemas, sabe? Olha, faz como achar melhor. É um elfo, e estão apostando muito nele, o que não parece ser bom, para falar a verdade. Espero que você seja bom, porque parece que ele é – Lili falava e andava, tentando se afastar do samurai que chamava muita atenção.
-Legais ou não, são jogos de azar, são desprezíveis e um veneno para a alma, pequena. E não duvide de minhas capacidades, o elfo sofrerá com minha katana! A arma de meus ancestrais o partirá ao meio no duelo! – Tomoe quase gritava de entusiasmo.
-Armas reais são proibidas, você vai usar uma espada de madeira comum – esclareceu Eld, impossibilitado de esconder o sorriso que lhe brotou no rosto.
-Não... vou... não...
-É, não – confirmou Lili.
-Que tipo de duelo é este?? Sem armas? – a indignação em pessoa.
-É um jogo, Tomoe, não é para pessoas saírem feridas – acalmou Erudhir.
Grupos de entusiastas pelas provas passavam apressados pelo tamuriano parado, tentando aceitar que não usaria sua katana. Aquilo não fazia o menor sentido, refletiu. Era quase um insulto.
-Apenas um torneio, mas na ficha consta a palavra duelo. Que jogo sujo, que vergonha para os participantes e organizadores – Tomoe sentou em um banco e se deixou ficar.
Jovens se acotovelavam e empurravam para conseguir o melhor lugar na arena aberta, vendedores corriam o lugar e ofereciam as delícias locais, alguns cambistas negociavam ingressos, estes eram cobrados apenas pelos camarotes, onde comerciantes e nobres podiam assistir as disputas longe da ralé.
-Vamos ver no que vai dar isso, haha! – riu, Erudhir, tentando dissipar o nervosismo.
-Boa sorte, Erudhir, fique tranquilo. Li que o ideal é que prenda a respiração para atirar a flecha, ajuda na mira – instruiu o feiticeiro.
-Ah, obrigado, vai ficar tudo bem, já faço isso tem algumas décadas, haha – rindo nervoso.
No centro da improvisada arena, no meio de uma larga rua fechada, foram posicionados alguns alvos, atrás muros de proteção de palha e madeira, além da cortesia de magias de proteção por conta da loja de itens mágicos de Alberto Ganache, mago, comerciante e cozinheiro. Um homem foi até o centro e começou a falar das maravilhas de Arton, de Petrinia e de Malpetrim, da honra de participar do tradicional torneio. A multidão vaiava, queriam flechas e diversão. Bardos cantavam, agora, o hino de Petrinia e tocavam seus instrumentos.
Do outro lado da arena o grupo notou um rosto familiar, era o sujeito da taverna, o atravessador de heróis. Ele acenou e sorriu, para em seguida sumir na multidão.
-Ele vai estar observando, Erudhir – disse Tomoe – temos que fazer nossa parte.
-Sim – o elfo sabia que deveriam agir bem naquele momento.
No centro da arena as regras começavam a ser explicadas, a eminência do início fez o público passar de hostil para apreensivo, nomes começaram a ser chamados, eram os primeiros participantes. Ouviu-se chamar o nome do elfo.
-Minha vez, me desejem sorte, pois só passa um.
-Não há sorte, só há o que é justo – afirmou Eld, tão rígido que fez uma pedra parecer mole.
Erudhir caminhou até o centro da arena, cumprimentou os que já estavam lá, um halfling de rosto redondo e um pequeno arco, um meio-orc, forte, com um arco imenso, um goblin usando uma vassoura com uma corda amarrada e dois humanos, estes pareciam melhores, arcos bem cuidados, os seguravam de maneira confiante. O clérigo tomou posição. Cada um teria direito a três disparos. Erudhir retesou o arco, os músculos do braço treinado exercendo a força necessária para puxar a corda resistente, a flecha pousada delicadamente ao lado do rosto, um olhar, soltou. O projétil voou rápido e atingiu quase o centro do alvo, não a pontuação máxima, mas um excelente tiro. A primeira saraivada fez o clérigo de Allihanna perceber quem eram seus oponentes, e ele só precisaria se preocupar com dois, o humano de cabelo curto e barba longa acertou o alvo próximo ao centro, não a pontuação máxima, mas um tiro muito bom, o outro, também humano, cabelos negros trançados na altura da cintura, barba feita, roupa preta, um osso pendurado no arco, cravou a flecha na pontuação máxima, o melhor tiro da rodada. Chamou a atenção do elfo a velocidade com que o último atirava, puxava e soltava  a corda instintivamente, como que fizesse parte de sua rotina. Admirável, pensou, péssimo para os concorrentes.
Mais uma saraivada, o goblin arrebentou a corda, puxou um trapo e amarrou na vassoura velha que fazia o trabalho de um arco, incrivelmente as flechas eram arremessadas, o halfling mirava por muito tempo, o braço pesava e as flechas perdiam alcance, caindo antes do alvo. O meio-orc, notou, usava o arco como se nada fosse, suas flechas entravam até a metade no alvo, sempre longe do centro. Erudhir novamente puxou a corda, a madeira de Lammor rangeu, "me guie deusa", pensou, e a flecha voou. Pontuação máxima. O humano de barba não igualou o tiro, o outro, porém, acertou a flecha anterior, destruindo-a. Aquele homem era muito habilidoso. Não havia nada a fazer, seria necessário um tiro perfeito e que o homem errasse ao menos um pouco, algo menos que a perfeição seria o sifuciente, não era impossível.
Última rodada. o meio-orc já havia indo embora e o goblin desistido, a vassoura quebrada no chão. Era o derradeiro tiro, a última chance, para ultrapassar o humano de roupa preta seria necessário um tiro perfeito. Retesou o arco, fez novamente a madeira ranger, a flecha encostada no rosto, olhos no alvo, segurou a respiração, como havia dito o feiticeiro, olhos no alvo, ouviu o arco do homem de preto retesar e ser solto, olhos no alvo, soltou. O homem de barba fez um bom tiro, não perfeito, estava fora, Erudhir acertou a pontuação máxima, olhou para o lado e não viu o homem de preto, ele já caminhava para fora da arena, sua flecha no centro do alvo, atravessando as duas anteriores. O elfo sorriu, existiam pessoas muito habilidosas no mundo, por algum motivo aquilo o alegrou. Vaias para o goblin, aplausos para os humanos e, surpreso, Erudhir notou que para ele, o halfling passava um chapéu e angariava bolinhos e outros quitutes da massa na cerca.
O clérigo caminhou até o grupo, para seu estranhamento: sorrisos.
-Amigo Erudhir! – Tomoe sorria com a boca, olhos, mãos e tudo mais.
-Tomoe? Você está bem? Descul... – o elfo começou, sem poder terminar.
-Ganhamos trinta tibares de ouro nas apostas! Trinta! Lili apostou no cara de preto! – pudores com jogos de azar esquecidos, a miséria para trás.
-Você apostou em outro? – Erudhir estava quase chateado.
-Lili disse que ele era muito bom, muito bom mesmo, iríamos ficar sem dinheiro hoje, fiz pelo bem do grupo! – Tomoe cravou os olhos no clérigo, o pragmatismo em forma de samurai – Agora é minha vez! Irei lançar todos ao chão! – a euforia em forma de tamuriano.
Os jogos prosseguiram, ao fim das disputas de arco o homem vestido de preto conseguiu o segundo lugar, ultrapassado por um elfo barrigudo de olhar preguiçoso e mira sobrenatural, seu nome era Sandolin. Para muitos a Grande Feira é uma oportunidade de negócios, para outros o sustento. Sandolin se encaixava no último caso. Sozinho, bêbado costumas, o prêmio do torneio lhe garantia bebida por meses sem a necessidade de trabalhar novamente, as tavernas de Malpetrim sempre torciam pelo elfo, uma garantia de lucro. Em terceiro lugar uma jovem halfling, a habilidade do tamanho do bolo que trazia na mochila - que não largava nem para atirar.
Após a breve premiação pessoas rapidamente correram para alterar a arena. Rapazes de calças curtas e sapatos surrados tiravam os alvos, carregavam a palha e madeira para fora da arena. Um mago dissipou a magia, fez surgir aves, luzes e um dragão piscou amistoso no céu daquele dia, ele fazia um sinal de positivo com o pata dianteira direita. Mais jovens traziam agora hastes de madeira dos mais variados tamanhos, as armas. Espadas curtas, longas, bastadas, adagas, as mais variadas modalidades.
Era a vez da esgrima, a prova mais popular da feira. O público vibrava, a esgrima, não raro, proporcionava ossos quebrados e gritos de dor, uma diversão saudável e barata para qualquer cidadão de Malpetrim. Crianças tinham cartazes com nomes de alguns competidores, rapazes e moças gritavam os nomes de seus favoritos, suas beldades. Tomoe estava na terceira chave, a primeira luta seria contra um elfo conhecido apenas por “Lulu”, tradicional participante, já havia ganho o torneio duas vezes, porém já há mais de 20 anos, para um elfo, ontem.
Crianças gritavam por seus ídolos e choravam ao vê-los saírem derrotados, machucados, sem dentes. Algumas se divertiam com isto. Então Tomoe adentrou à arena, passos firmes, decididos, na cintura duas espadas de madeira, uma longa e outra curta. Pelas regras do torneio bastava tocar o adversário para o golpe ser computado, de forma que Tomoe sacou apenas uma das espadas pela precisão do ataque. Seu adversário entrou em seguida, era um pouco menor que o samurai, físico mais modesto, cabelos curtos e olhos de rosados brilhantes, tinha um ar despreocupado que irritava Tomoe, trazia também duas armas, porém uma espada curta e outra ainda menor, uma adaga de madeira. Gritos por toda a parte quando o elfo acenou, crianças, jovens, adultos, muitos pareciam admira-lo.
-Eu lhe cumprimento, er, Lulu. Que vença o melhor.
-É um prazer, tamuriano, que nossa luta alegre aos espectadores – respondeu o elfo, sua voz era melodiosa.
 Os olhos negros do samurai analisavam o elfo, ele sabia reconhecer talento, e ali havia muito, seu adversário, percebia, lhe analisava desde o momento em que entrou na arena. O sinal foi dado, Tomoe segurou firmemente a espada com as duas mãos, o elfo sacou as armas, segurava-as com aparente desleixo, que não enganou Tomoe, aquilo era habilidade. Por alguns instantes apenas se olharam, se mediam, reconheciam a força um do outro. Então o samurai avançou. Rápido, Tomoe tentou golpear o pescoço do elfo com a ponta da espada, sendo bloqueado facilmente pela espada curta e, com a adaga, em um movimento sutil e despretensioso, o adversário tocou levemente a mão de Tomoe.
-Lulu um, Tomoe zero! – gritou o juiz da partida.
Gritos. Urros. Tomoe sentiu a pressão da torcida, não o intimidou. Lulu acenou para todos, mais barulho.
Os dois tomaram novamente posição, durante as eliminatórias cada golpe interrompia a luta, para evitar que lutadores muito fortes machucassem os muito fracos. Tomoe olhou com outros olhos para o elfo, ele era bom, melhor do que imaginara. Muito bom. Era difícil admitir, mas sequer notara o ataque até ser atingido. Muito bom. Forte. Desta vez o elfo tomou a iniciativa, o samurai aparou o golpe da espada, depois, pela esquerda, o da adaga. Lulu avançou com o corpo, mantendo a adaga parada no ar, impedindo a espada do adversário fosse liberada. Tocou a perna do tamuriano com a espada curta, de forma ainda mais suave que o golpe anterior.
Forte.
Mais gritos, mais aplausos, mais acenos do elfo, alguns beijos para moças na cerca, caretas para as crianças.
Novamente os dois em posição, Tomoe tomou outra vez a iniciativa, precisava de três golpes. Avançou como um raio, desta vez o elfo não bloqueou, fora pego de surpresa, o samurai avançou, espada no alto mirando o ombro esquerdo. Lulu com uma velocidade inumana deu um pequeno passo para frente, indo em direção ao ataque, e em seguida uma leve virada de corpo para a direita, saindo completamente do alcance do golpe. Impulsionou mais uma vez o corpo na direção de Tomoe e puxou o samurai, que com a força do próprio movimento se viu correndo rumo ao vazio. Sentiu o toque da adaga de madeira na nuca. Fim.
-Lulu três, Tomoe zero! Lulu avança! – sentenciou o juiz.
Tomoe estava impressionado, jamais perdera de forma tão brutal para qualquer um que não seu mestre. Assim como Erudhir, ele sentia uma estranha satisfação, aquele homem era forte. O público gritava o nome do elfo, ele retribuía com beijos e acenos, corria ao redor da arena, cochichava com moças, fingia bater em alguns rapazes.
Tomoe olhou para o grupo, a tristeza se fez presente, nem ao menos apostaram no outro. Ele ficou surpreso, Eld não tinha nenhum comentário desagradável. Talvez a luta não tenha sido vergonhosa como pensou.

*****

Do alto das escadas era possível ouvir palavras mágicas, um murmurar constante. Lá embaixo, no porão, carne convertida em pedra, pedra convertida em lama, lama convertida em pedra. Laura sumiu sem deixar rastros no mundo.