sexta-feira, 1 de fevereiro de 2013

O grito do aço - Os olhos de paz | Parte 03



Entre os escombros do que parece ter sido uma taverna Aegir ouve um som, uma fina melodia dedilhada cuidadosamente. De passo em passo se aproxima, degusta cada nota, cada fração daquela maravilha, instintivamente cessa de cantar e seu bandolim acompanha aquela música encantadora. Ao ultrapassar o lugar onde minutos atrás havia uma porta encontra um velho de mãos rápidas, suaves, incríveis. Cada dedo parece fazer parte de um plano diverso, que mestre, que poder. O bardo senta ao seu lado e eles tocam sem dizer palavra, apenas a música os guia nesta nova e imprevista amizade.

*****

Dorian chega às portas do prédio central, seus homens cercam o lugar, não se faz um convite à luta, o que existe é intimação. Ele olha fixamente para uma janela no andar superior onde sombras dançam. Do alto os guardas não ousam atacar, certamente seriam destruídos por aqueles que acompanham tal figura assustadora. As sombras desaparecem, passos são ouvidos no interior da construção, após alguns instantes a grande porta de entrada é aberta, saem sujeitos armados com lanças e escudos, ao centro um grupo, homens e mulheres, um deles amarrado e amordaçado. Do grupo protegido um homem avança e ultrapassa a parede de lanças.
Meu nome é Oldenor, mercador do reino de Nelas. Estou nesta cidade fazendo negócios, não tenho qualquer interesse nela que valha minha vida. Assim, conversei com os demais nobres e resolvemos lhe entregar o príncipe, que pretendia resistir, mesmo que sem qualquer chance de vitória contra o grande poderio que o senhor demonstra” disse se ajoelhando, o homem amordaçado grunhia freneticamente, sangue começa a correr da boca apesar da mordaça. “Rendeste o príncipe? O prostraste e submeteste às tuas ordens e vontade?” pergunta Dorian. Ajoelhado e um tanto confuso o homem consente. Dorian caminha até ele, o examina demoradamente, suas roupas, seus modos, seu cheiro. “Tragam o príncipe, o executem.” Um dos homens agarra e arrasta o falso nobre pelas roupas, com um golpe seco lhe corta a garganta e faz o sangue correr. “Mercadores não têm honra, são vermes que vivem do trabalho alheio, não têm força, apenas dinheiro. Tão pouca honra possuem que seus joelhos mais que os pés conhecem o chão, mais do que o rosto dos príncipes conhecem seus sapatos e canelas, uma vez que é tudo que sua vista alcança. Prostrar-se e implorar é parte do ofício tanto como respirar é parte do viver, não acha, Oldenor?”. Mais uma vez ele consente. “Então, me explique, Oldenor, o motivo para não estares prostrado corretamente, para teus joelhos alternarem o peso de teu corpo e para a presteza com que estes guardas abriram para ti espaço, sem relutar, sem desconfiança de traição e até com certa reverência. Além disto, me explique, como pode o príncipe conseguir governar um povo que o odeia tanto, afinal nenhum dos guardas, das mulheres e homens aqui presentes sequer pareceu lamentar ou sentir sua morte.” questiona. Flyman treme, aquele era apenas um bárbaro imundo, como percebera seu estratagema? Ele receia responder, todo o corpo treme, teme continuar olhando para baixo e ter sua cabeça cortada, teme olhar para cima e ser morto de outra forma. “É a primeira vez que vejo um mercador tão tímido!” graceja Dorian, sendo acompanhado pelo riso deus seus homens. O príncipe sabe que fora descoberto, busca em sua mente uma saída, alguma forma de manter o pescoço inteiro. Ergue então a cabeça e encara seu adversário “Oh, grande general deste exército, perdoe este pobre homem por ceder aos instintos mais básicos e medíocres do ser humano!” – levanta – “Sou Anderson Flyman, príncipe desta cidade. Reconheço sua vitória e, com isto, nos entregamos à tua misericórdia.” Dorian ri. “Hahaha! Julgas que isto é um exército? Enganas-te, não lidero aqui sequer a quinta parte de minha gente, apenas o suficiente para vencer esta vila de homens covardes. Agora peço que perdoe este bárbaro inculto, talvez eu não fale tão bem tua língua, talvez o conceito apenas me seja estranho. O que vem a ser misericórdia?

*****

Cada homem pilhava aquilo que julgava poder carregar, alguns levam ouro, outros comem e bebem antes de pensar em levar o ouro, enquanto há aqueles que preferem as moças, ainda que muitas reprovem a iniciativa, algo que não altera muito as circunstâncias. Aidil visita as casas já despojadas dos donos, entra em uma delas, observa a mobília, não é feita de madeira fraca, os donos não eram pobres, a mesa é trabalhada, os pés possuem bom acabamento, na parede um quadro com o que parece ser a família residente, um homem, a esposa e dois filhos, um menino e uma menina, ele observa a mulher e sente saudade de casa, olha para trás e desiste, a mesa é muito grande. Atravessa a porta e ouve música ao longe, a segue. Anda de cômodo em cômodo até encontrar Aegir e um velho, os dois não trocam palavras, de olhos fechados tocam algo que mesmo para Aidil, um costumas combatente, bruto e de poucos conhecimentos musicais, é lindo. Ele senta e ouve. Neste momento o velho inicia seu canto, acompanhado pelo bandolim de Aegir.

Veio do sinistro Leste
Homem forte e poderoso
Lâmina de brilho celeste
Glória obter ao seu povo

Seu sangue ferveu por Gundör
Cidades legou ao fogo
Vilas destruídas sob cada passo
Homens, mulheres e gritos de horror

Olhos cruéis procuram por morte
Terrível e majestoso guerreiro
Nunca houve igual em poder e porte
Aos inimigos resta apenas o ermo

O mal convida a morte
O medo atrai o desespero
O grande homem cai para o pequeno
Os demônios têm sua parte

Aegir manteve durante todo o tempo os olhos fixos em Aidil, sabe o que aquelas palavras significavam e qual o destino para quem as profere. “Por que, meu bom homem?” questionou o bardo. “Para me avistar com teu líder, meu jovem.” disse o velho com um sorriso no rosto. “Isto posso fazer por um menestrel de teu porte.” responder com tristeza Aegir, ao seu lado Aidil concordava, os três seguiram para o centro da cidade.

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Amarrem todos em estacas junto ao prédio” ordenou Dorian. Os guardas percebem que a negociação terminou, tentam empunhar as armas, flechas voam e perfuram algumas mãos, uns poucos tentam fugir e sentem o frio das espadas lhes atravessar o peito, mulheres gritam e correm, são seguras e dominadas, todos, sem exceção, terminam rendidos e atados às estacas na medida em que estas são enterradas. Flyman grita, diz que pagará àquele que o libertar rios de ouro, Dorian avança, lhe soca o estômago e saca uma adaga, exige que coloque a língua para fora e a corta. Aquele ser rastejante o vencera, seu interior ferve em ódio, maldito seja o verme, prostrara, de fato, o príncipe, a glória lhe fora furtada. O novo líder de Karnak observa os homens e mulheres amarrados às estacas em volta do prédio, lágrimas tentam em vão lavar o terror do rosto de cada um. Ele dá as costas à enorme pira funerária e avista Aegir, Aidil e um velho. Os olhos daquele homem chamam a atenção de Dorian, há poder ali, um poder muito além do que seus companheiros imaginam. Ele dá a ordem, gargantas são cortadas, o líquido carmesim espirra e faz cessar os gritos, o solo logo muda de cor, Gundör em breve estará satisfeito. Tochas são arremessadas para dentro da construção, o fogo rapidamente se inicia, chamas lambem os telhados e paredes, o sacrifício está feito.