Entre os escombros do que parece ter sido uma taverna Aegir
ouve um som, uma fina melodia dedilhada cuidadosamente. De passo em passo se
aproxima, degusta cada nota, cada fração daquela maravilha, instintivamente
cessa de cantar e seu bandolim acompanha aquela música encantadora. Ao
ultrapassar o lugar onde minutos atrás havia uma porta encontra um velho de
mãos rápidas, suaves, incríveis. Cada dedo parece fazer parte de um plano
diverso, que mestre, que poder. O bardo senta ao seu lado e eles tocam sem
dizer palavra, apenas a música os guia nesta nova e imprevista amizade.
*****
Dorian chega às portas do prédio central, seus homens cercam
o lugar, não se faz um convite à luta, o que existe é intimação. Ele olha
fixamente para uma janela no andar superior onde sombras dançam. Do alto os
guardas não ousam atacar, certamente seriam destruídos por aqueles que
acompanham tal figura assustadora. As sombras desaparecem, passos são ouvidos
no interior da construção, após alguns instantes a grande porta de entrada é
aberta, saem sujeitos armados com lanças e escudos, ao centro um grupo, homens
e mulheres, um deles amarrado e amordaçado. Do grupo protegido um homem avança
e ultrapassa a parede de lanças.
“Meu nome é Oldenor,
mercador do reino de Nelas. Estou nesta cidade fazendo negócios, não tenho
qualquer interesse nela que valha minha vida. Assim, conversei com os demais nobres
e resolvemos lhe entregar o príncipe, que pretendia resistir, mesmo que sem
qualquer chance de vitória contra o grande poderio que o senhor demonstra”
disse se ajoelhando, o homem amordaçado grunhia freneticamente, sangue começa a
correr da boca apesar da mordaça. “Rendeste
o príncipe? O prostraste e submeteste às tuas ordens e vontade?” pergunta
Dorian. Ajoelhado e um tanto confuso o homem consente. Dorian caminha até ele,
o examina demoradamente, suas roupas, seus modos, seu cheiro. “Tragam o príncipe, o executem.” Um dos
homens agarra e arrasta o falso nobre pelas roupas, com um golpe seco lhe corta
a garganta e faz o sangue correr. “Mercadores
não têm honra, são vermes que vivem do trabalho alheio, não têm força, apenas
dinheiro. Tão pouca honra possuem que seus joelhos mais que os pés conhecem o
chão, mais do que o rosto dos príncipes conhecem seus sapatos e canelas, uma
vez que é tudo que sua vista alcança. Prostrar-se e implorar é parte do ofício
tanto como respirar é parte do viver, não acha, Oldenor?”. Mais uma vez ele
consente. “Então, me explique, Oldenor, o
motivo para não estares prostrado corretamente, para teus joelhos alternarem o
peso de teu corpo e para a presteza com que estes guardas abriram para ti
espaço, sem relutar, sem desconfiança de traição e até com certa reverência. Além
disto, me explique, como pode o príncipe conseguir governar um povo que o odeia
tanto, afinal nenhum dos guardas, das mulheres e homens aqui presentes sequer
pareceu lamentar ou sentir sua morte.” questiona. Flyman treme, aquele era
apenas um bárbaro imundo, como percebera seu estratagema? Ele receia responder,
todo o corpo treme, teme continuar olhando para baixo e ter sua cabeça cortada,
teme olhar para cima e ser morto de outra forma. “É a primeira vez que vejo um mercador tão tímido!” graceja Dorian,
sendo acompanhado pelo riso deus seus homens. O príncipe sabe que fora
descoberto, busca em sua mente uma saída, alguma forma de manter o pescoço
inteiro. Ergue então a cabeça e encara seu adversário “Oh, grande general deste exército, perdoe este pobre homem por ceder
aos instintos mais básicos e medíocres do ser humano!” – levanta – “Sou Anderson Flyman, príncipe desta cidade.
Reconheço sua vitória e, com isto, nos entregamos à tua misericórdia.”
Dorian ri. “Hahaha! Julgas que isto é um
exército? Enganas-te, não lidero aqui sequer a quinta parte de minha gente,
apenas o suficiente para vencer esta vila de homens covardes. Agora peço que perdoe
este bárbaro inculto, talvez eu não fale tão bem tua língua, talvez o conceito apenas
me seja estranho. O que vem a ser misericórdia?”
*****
Cada homem pilhava aquilo que julgava poder carregar, alguns
levam ouro, outros comem e bebem antes de pensar em levar o ouro, enquanto há aqueles
que preferem as moças, ainda que muitas reprovem a iniciativa, algo que não
altera muito as circunstâncias. Aidil visita as casas já despojadas dos donos,
entra em uma delas, observa a mobília, não é feita de madeira fraca, os donos
não eram pobres, a mesa é trabalhada, os pés possuem bom acabamento, na parede
um quadro com o que parece ser a família residente, um homem, a esposa e dois
filhos, um menino e uma menina, ele observa a mulher e sente saudade de casa,
olha para trás e desiste, a mesa é muito grande. Atravessa a porta e ouve música
ao longe, a segue. Anda de cômodo em cômodo até encontrar Aegir e um velho, os
dois não trocam palavras, de olhos fechados tocam algo que mesmo para Aidil, um
costumas combatente, bruto e de poucos conhecimentos musicais, é lindo. Ele
senta e ouve. Neste momento o velho inicia seu canto, acompanhado pelo bandolim
de Aegir.
Veio do sinistro Leste
Homem forte e poderoso
Lâmina de brilho celeste
Glória obter ao seu povo
Seu sangue ferveu por Gundör
Cidades legou ao fogo
Vilas destruídas sob cada
passo
Homens, mulheres e
gritos de horror
Olhos cruéis procuram
por morte
Terrível e majestoso
guerreiro
Nunca houve igual em
poder e porte
Aos inimigos resta
apenas o ermo
O mal convida a morte
O medo atrai o
desespero
O grande homem cai
para o pequeno
Os demônios têm sua
parte
Aegir manteve durante todo o tempo os olhos fixos em Aidil,
sabe o que aquelas palavras significavam e qual o destino para quem as profere. “Por que, meu bom
homem?” questionou o bardo. “Para me
avistar com teu líder, meu jovem.” disse o velho com um sorriso no rosto. “Isto posso fazer por um menestrel de teu
porte.” responder com tristeza Aegir, ao seu lado Aidil concordava, os três
seguiram para o centro da cidade.
*****
“Amarrem todos em
estacas junto ao prédio” ordenou Dorian. Os guardas percebem que a
negociação terminou, tentam empunhar as armas, flechas voam e perfuram algumas
mãos, uns poucos tentam fugir e sentem o frio das espadas lhes atravessar o
peito, mulheres gritam e correm, são seguras e dominadas, todos, sem exceção, terminam
rendidos e atados às estacas na medida em que estas são enterradas. Flyman
grita, diz que pagará àquele que o libertar rios de ouro, Dorian avança, lhe
soca o estômago e saca uma adaga, exige que coloque a língua para fora e a
corta. Aquele ser rastejante o vencera, seu interior ferve em ódio, maldito
seja o verme, prostrara, de fato, o príncipe, a glória lhe fora furtada. O novo
líder de Karnak observa os homens e mulheres amarrados às estacas em volta do
prédio, lágrimas tentam em vão lavar o terror do rosto de cada um. Ele dá as costas à enorme
pira funerária e avista Aegir, Aidil e um velho. Os olhos daquele homem chamam
a atenção de Dorian, há poder ali, um poder muito além do que seus companheiros
imaginam. Ele dá a
ordem, gargantas são cortadas, o líquido carmesim espirra e faz cessar os
gritos, o solo logo muda de cor, Gundör em breve estará satisfeito. Tochas são
arremessadas para dentro da construção, o fogo rapidamente se inicia, chamas
lambem os telhados e paredes, o sacrifício está feito.