quarta-feira, 23 de novembro de 2016

Sob a Lua de Ragnar | Prólogo | Parte 3

VOLUME I - SOB A LUA DE RAGNAR

Prólogo



-Eles são totalmente confiáveis – sussurrou Lili – entraram em uma briga sem ter nada a ganhar e não me enxotaram depois que fui conversar, bem, não falaram comigo por mais de uma hora, mas já é algo, né?
-É um bom ponto – ponderou Bain – Viemos procurar pessoas confiáveis, eles parecem, de fato, ser um grupo que preenche os requisitos.
-Com certeza, com certeza, aquele samurai é forte, ele tem uma espada de fogo – Lili olhava para Tomoe enquanto cochichava com Bain – e parece saber manejar – Quer dizer ele no mínimo faz parecer que sabe, o que já é quase a mesma coisa.
-Entendo, fogo, uma espada de fogo... um homem de bom gosto – Bain concordou, olhos fixos na katana do samurai.
-Sabia que você ia gostar – encerrou Lili.
Bain olhou para os lados, se fazendo de desentendido enquanto a halfling se adiantou.
-Como eu disse, ele concordou, parece que é bastante razoável que formemos um grupo, será mais seguro para cada um de nós e aumentará nossas chances de encontrar contratos, aventuras e oportunidades. Modéstia à parte, minha ideia é muito boa.
-O que for preciso, preciso reunir poder para retomar Tamura – resmungou Tomoe.
Erudhir parecia um pouco distante, levemente alcoolizado e imerso em sua curiosidade em relação às formas de lazer humano. Ele observava um pequeno grupo jogando cartas, todos apostavam e tentavam simultaneamente roubar no jogo, sendo que nenhum estava sóbrio o suficiente para tanto, tão pouco para notar que todos os outros roubavam, ou tentavam ao menos, tão pouco para notar que as quantias apostadas, recuperadas e roubadas eram aleatoriamente jogadas ou retiradas da mesa, sem qualquer relação com o valor dito ao se fazer a jogada. Erudhir ria daquilo.
-Não gosto de ladinos nem de arcanos – disse Eld – provavelmente trarão problema. Que seja, ela é péssima ladina, foi pega por um bêbado, fácil de ficar de olho.
Lili ouviu o comentário do paladino, já estava se acostumando com o fato de que ele só abria a boca para ofender alguém com uma verdade.
-... acho que isso encerra o assunto – disse ela – imagino que esta é uma boa taverna para ficarmos, o preço é baixo, não é muito suja e fica perto do centro da Feira. O elfo e o tamuriano talvez tenham interesse em saber, amanhã é dia de torneio, haverá disputa de arco e esgrima.
-Olá – disse um homem de repente, chegando no meio do grupo.
Todos olharam para o estranho falava.
-Desculpem, não pude deixar de notar o grupo que se formava – disse o homem – Permitam-me, meu nome é Erídias Mikatas, trabalho aqui em Malpetrim recrutando jovens promissores!  E este grupo é promissor! Diversificado, bastante completo! – continuou ele.
O homem tinha estatura um pouco acima da média, era robusto, sem ser forte, longos cabelos lisos e loiros penteados cuidadosamente para trás, pele alva, olhos azuis profundos e, ao contrário da grande maioria dos frequentadores da taverna, cheirava bem. Usava roupas ajustadas, personalizadas, uma calça verde-escura de um bom tecido, camisa branca de botões e por cima uma jaqueta de veludo azul com botões prateados. Parecia bem-sucedido, emanava empolgação e oportunidades.
-Deixa ver se eu entendi, você é um atravessador? Alguém precisa de aventureiros, você encontra aventureiros, os aventureiros fazem o trabalho, o cara paga e você paga os aventureiros, ficando, claro, com uma parte. Entendi bem? – perguntou Lili, um pouco irritada por não ter pensado em algo tão genial antes.
-Exato! Sem contratos não há aventuras, ou quase! E sem aventureiros muita coisa deixa de ser feita. Se uma parte não encontra a outra, bastante gente fica desapontada, pobre e, não raro, morta. Sou um facilitador! Entretanto é apenas uma faceta minha, também gosto de guiar, de encorajar e ganhar um dinheiro fácil com apostas. E foi esta última parte, por enquanto, que me trouxe aqui – sorriu o terceirizador de aventureiros.
-Guiar? – indagou Bain – Poderia ser mais claro quanto a esta parte?
Eld olhava desconfiado para o homem, como olhava para qualquer ser humano. Não gostava de Erídias, parecia falso e pouco confiável, não gostava da ideia de ser agenciado, a justiça age sem atravessadores. Observou o homem que conversava com os demais, explicando sobre a Grande Feira, sobre algumas questões econômicas envolvidas, anotando em um pedaço de pergaminho os locais e horários das inscrições de arco e esgrima, pois queria ver como o elfo e o samurai se saiam, poderiam ser azarões e ele ganharia dinheiro. Seus gestos eram fluidos, quase felinos. Eld odiava gatos. Todos. Humanos ele apenas desprezava e ignorava sempre que possível. De forma sutil ele se afastou do grupo, puxando a cadeira para um canto. Lá cochilou enquanto os demais discutiam coisas insignificantes, tais como ganhar dinheiro e poder comer nos próximos dias, Eld não suportava estes pormenores.
-Certo, certo, acho que por enquanto é isso. Inscrevam-se! Amanhã poderei ver se foi uma boa ideia vir até aqui e falar com vocês! Espero que mais tarde possamos tratar de outros assuntos, tais como contratos, antes quero ver algumas de suas habilidades. Inscrevam-se! – frisou Erídias, e dizendo isto se afastou acenando para todos.
-Por favor, receba meus agradecimentos – Tomoe tomou a frente do grupo e fez uma breve saudação, curvando levemente o corpo para frente – Que possamos continuar esta conversa depois de provarmos nosso valor.
Erídias sorriu e acenou com a cabeça, devolvendo com uma pequena mesura a saudação, virou de costas e subiu a escada em direção à porta.
Naquele homem Tomoe via alguém que poderia lhe guiar a lordes e senhores poderosos, todos contatos importantes para seus planos futuros. Aquela era sua primeira chance de mostrar seu valor, suas capacidades, por anos ele treinou corpo e espírito, não falharia. O samurai olhou para a espada em sua cintura, lembrou da tarde de primavera, mais de quinze anos atrás, quando recebeu das mãos do avô a arma. Foi o dia no qual completou seu treinamento básico de dez anos e se tornava um homem. Nada disto foi suficiente para salvar Tamu-ra da Tormenta, sequer perto de ser suficiente. Tomoe era fraco. E odiava sua própria fraqueza. Tomoe levantou os olhos e viu seu companheiro clérigo de Allihanna. Não entendia como o elfo podia ser tão positivo e descontraído, tendo Lennórien e o todos os reinos élficos sido destruídos pelos goblinóides de Lammor.
Erudhir estava ainda olhando para as pessoas da taverna, rindo de alguns bêbados, admirando a beleza crua das humanas, se interessava especialmente pela pressa humana em viver. O elfo, de certa forma, invejava os humanos, tinham uma deusa presente em cada ação de cada dia de suas vidas. Humanos viviam pouco, não possuíam habilidades inatas, não possuíam qualquer graça, todavia, eram incríveis. E tinham uma deusa admirável. Os elfos tinham Glórienn. Por um momento sua boca se contorceu e pequenas rugas se acumularam entre as sobrancelhas do rosto delicado.
-Prezados, foi um dia atribulado. Subirei para meu quarto, pretendo descansar para o dia de amanhã, que promete ser qualquer coisa de promissor. Uma ótima noite para todos, que Wynna lhes proteja. E, novamente, foi um prazer – desejou Bain, subindo para os quartos.
-É, vou nessa. Furo quem tentar me olhar pela fechadura – ameaçou graciosamente Lili, subindo as escadas de forma suspeita atrás de um grupo que tivera sorte no jogo, mas que agora estava já um tanto embriagado e vulnerável.
-Não temos um estábulo por aqui, Erudhir, talvez um quarto quieto te ajude – disse Tomoe, balançando a mão esquerda em frente aos olhos do elfo e lhe trazendo à realidade.
-Ah, sim, vamos ver. Um pouco de silêncio pode ajudar, mas fico no chão – assentiu ele.
Os dois subiram deixando a algazarra da taverna para trás. Lá também ficou um paladino, dormindo em um canto escuro.

*****

Tenebra, a deusa da noite e das trevas, já cobria o mundo com seu manto, a lua ia alta expondo becos e ruas sujas de lama e lixo, comerciantes recolhiam mercadorias e fechavam barracas, outros ainda insistiam e disputavam os últimos clientes. Através da pequena janela no segundo andar de uma casa ele observava o vai e vem das gentes. Ele aguardava. Por anos havia ansiado pela oportunidade, pela chance. Ela chegara. Olhou para dentro do quarto no qual pacientemente, uma vez mais, aguardava. Nada. Todo o ambiente estava impecavelmente limpo, fazia questão de manter o cômodo assim. Puro, imaculado. Não que fosse necessário, era, porém, sua vontade. Uma demonstração de afeto e cuidado para com o convidado, que certamente não passaria despercebida.
Voltou os olhos novamente para a rua, algumas crianças corriam atrás de um cachorro, duas meninas andavam calmamente de mãos dadas e com vestidos de festa, uma delas tinha sangue élfico, notou. Ambas deram passos rápidos quando um homem com roupas rasgadas e sujas se aproximou. Sorriu para aquilo e então lembrou. Lembrou de sua surpresa, anos atrás, no dia em que conheceu aquele que agora tinha a posição de seu mestre, seu tutor. Riu. Um viajante, quem poderia dar alguma coisa por um viajante? Um maltrapilho! E ele sussurrou a senha. A senha! Nos lábios de um mendigo! Na rua as pessoas riram quando abraçou o decrépito homem e, com afeto e zelo, o levou até sua própria casa “gostaria de entrar, caro amigo? ”, “que tal um cobertor para aquecer o corpo? Entre, por favor”. E o mendigo entrou. Já se contavam cinco anos. Cinco longos anos. Para seu mestre era nada, um vislumbre, para ele, mero humano desprovido de poder, uma parcela importante de uma vida. Tornou a olhar para dentro. Ninguém.
Do lado de fora um bardo cantava uma balada infame sobre Marah e Keenn, de como a deusa lhe aplacava a fúria guerreira. Torceu a boca para aquilo, deuses pequenos e tolos. Pelo canto dos olhos notou que o ambiente havia se alterado. Por um instante a sala ficou mais escura do que estivera até então. Ele olhou para o canto do quarto, onde uma poltrona de veludo carmesim estava posicionada, um conforto para o corpo de seu mestre. Viu um ponto escuro crescer, tomar forma humanoide e sentar no lugar de honra.
-A poltrona é uma extravagância – disse uma voz firme e poderosa, ao mesmo tempo reconfortante e agradável.
-Peço seu perdão, meu senhor – suplicou o homem, joelho direito apoiado no chão, olhos cerrados, na testa o suor se acumulava. Nervosismo, apreensão, ansiedade, idolatria.
-Levante. Temos coisas a tratar – ordenou o convidado.
O anfitrião se pôs de pé, levantou os olhos e viu um homem, pele levemente esverdeada, pequenas escamas cobrindo o rosto, um nariz vestigial, quase um detalhe, a boca sem lábios. O capuz recolhido mostrava uma cabeça sem cabelos, os olhos duas esferas amareladas com pupilas verticais. Aqueles olhos atraiam tudo a sua volta, havia uma força poderosa ali, era o poder de seu mestre, de seu tutor, daquele que lhe iniciara nos mistérios da ordem.
-Mais alguém frequenta esta casa? Este quarto? – quis saber o mestre.
-Apenas uma menina, não mais de quinze anos. Ela limpa o lugar – respondeu.
-Ela pode falar deste quarto, desta sua cadeira destoante de toda casa, de sua solidão, pode um dia ouvir por trás das portas e paredes. Mate-a. Faça o corpo desaparecer. Faça longe – ordenou o homem no canto da sala.
-Será feito, meu senhor. Não voltará a acontecer, peço seu perdão por esta estupidez – disse, o peito apertado pela preocupação que trouxera para seu amado tutor, o gosto ferroso de sangue inundando a boca pelo lábio mordido.
Por um momento se fez silêncio, nenhum dos dois pronunciou palavra, o homem sentado observava impassível o humano, que angustiado travava uma luta íntima para aceitar seus atos irresponsáveis e falhos. O ser ofídico parecia extrair prazer do sofrimento daquele homem, de saber que uma palavra poderia lhe causar dor, que cada pequeno sinal de desaprovação traria consequências para vida daquele ser. Ele sorriu e, para deleite do humano, falou com sua voz real.
-E o plano? Já encontrou um garoto adequado? Uma disssstraççção? Informe, Gajjjan, meu aprendizzz...
Uma onda de prazer tomou conta do corpo do homem, os olhos lacrimejaram e se voltaram para o teto do quarto, seus braços envolveram o próprio tórax em um abraço solitário, as pernas faltaram e ele estremeceu, a face entumecida. Aprendiz... aprendiz... aprendiz... a palavra rolava por sua mente, se espalhava e tocava cada canto, ele queria que ela estivesse em todo lugar. Aprendiz... sim, sim, sim... o... o...
 -Gajjjan... – a voz se fez ouvir novamente.
-Perdão, senhor! – disse, tentando se recuperar do devaneio, o corpo ainda trêmulo e úmido – É claro. O plano está sendo executado. O garoto foi escolhido, fiz os contatos solicitados, contratei dois grupos independentes, para garantir que a tarefa fosse executada. A distração está sendo providenciada, até amanhã terei tudo resolvido e sob controle.
O homem de olhos amarelos balançou a cabeça e apoiando as mãos na poltrona levantou, fez um breve gesto, murmurou algumas palavras e uma sombra se expandiu da palma de sua mão, crescendo até tomar todo seu corpo e desaparecer.
Gajan, agora sozinho, por alguns instantes observou o assento deixado vago. O coração martelando o peito, a respiração ofegante. Caminhou lentamente até a poltrona, observou o veludo limpo, caro e bem cuidado, ajoelhou em frente ao móvel e beijou um dos pés de madeira, em êxtase.




Ilustração de Amanda Mattos Della Lucia

segunda-feira, 21 de novembro de 2016

Sob a Lua de Ragnar | Prólogo | Parte 2

VOLUME I - SOB A LUA DE RAGNAR

Prólogo




Quitandas, bazares, ambulantes, punguistas, malabaristas, vendedores de doces, de salgados, ferreiros mostrando suas armas, armaduras, ferramentas, comerciantes de amuletos, artefatos, todos falsos, talvez verdadeiros, talvez. Tavernas cheias, hospedarias sem vagas, vagas em estábulos, promoções em locais suspeitos, cheiro de peixe, de carne, fumaça, esgoto, suor, perfume élfico, de amor, de sangue, sujeira, de lama, a mesma que enche os pés, a poeira o ar. Placas, muitas placas, avisos por toda a parte, comida, diversão, jogos, mais barato, mais emocionante, traga seus filhos, ele já foi companheiro de Niele, veja um filhote de dragão, veja um homem tocado pela Tormenta, pague por 2, leve 3. Grandes tendas oferecendo desafios de esgrima e arco, luta e montaria. Pessoas, muitas pessoas, de tamanhos, cores e formas diferentes. Muitas. Juntas, pedindo licença, empurrando, pedindo desculpas, pedindo um tibar para comprar pão, pedindo informação, pedindo a carteira de alguém ou apenas pegando sem avisar, trovadores, bardos, artistas mostrando sua arte, música vazando de portas, janelas, tendas, línguas, muitas línguas, humanas, élficas, anãs, outras. Pessoas gritando, cochichando, conversando, abraçando, beijando, correndo, andando, pulando e agachando. Animais de carga, estimação, animais fantásticos, trobos, cães, gatos, ratos, familiares, companheiros animais, animais humanoides. Erudhir estava parado no meio de uma multidão, olhos vagos, o desconforto explícito para qualquer conhecido ou desconhecido. A Grande Feira de Malpetrim não era o lugar mais aprazível para um clérigo de Allihanna.
-Parou outra vez – comentou uma voz logo atrás de Tomoe.
-Isso vai levar o dia todo – lamentou o samurai.
O paladino assentiu com a cabeça.
-Um incapaz e um mudo, perfeito – se lamentou novamente o samurai.
Tomoe foi até o elfo, pôs a mão esquerda em suas costas e empurrou gentilmente.
-Vamos, Erudhir, vamos procurar uma taverna, comer e pegar um quarto. Lá vai ser mais calmo e talvez encontremos um estábulo ou quintal para dormires.
-Duvido – disse Eld.
-Isto aqui é bem agitado, muito bagunçado, as pessoas não têm educação alguma. Um samurai tendo de pedir passagem para os plebeus. Alguém menos paciente já teria sacado a katana.
-Hunf – retrucou o paladino.
-Meus amigos de vidas curtas, por favor, dói dizer, mas vamos procurar uma taverna – suplicou Erudhir, mãos nos ouvidos, tentando fazer o barulho parar.
Tomoe olhou por cima da multidão e avistou uma pequena placa alguns metros à frente.
-Não sei bem se é a melhor opção, o nome é péssimo, “Javali Perneta”. Um nome destes não pode ser um lugar adequado – disse, olhando para o paladino e o clérigo, com um pequeno incômodo por nenhum deles buscar acomodações adequadas para alguém de sua classe – Mas vai ter de servir – pensou alto, resignado.
O trio caminhou até a taverna, empurrou a porta e entrou, sendo recepcionado pelo odor de cerveja barata, suor e carne queimada. A construção possuía uma escada de madeira que levava ao andar inferior, onde se acumulavam mesas, cadeiras e pessoas. O grupo desceu até o andar das mesas, no alto janelas altas mostravam alguns pés apressadas da rua, do lado oposto do salão uma escada subia levando para quartos. Eld foi na frente, não para desbravar o lugar, mas por estar cansado e querer uma cadeira, sentou em uma mesa vaga e foi alcançado pelos outros dois.
-Hunf – disse, Eld.
-É – confirmou Tomoe.
-Que pesadelo, estou abaixo da terra em uma cidade de humanos e você dois se comunicam em uma língua própria – balbuciou Erudhir.
O lugar era barulhento e estava bastante cheio, próximo à escada dos quartos um bardo cantava sobre um guerreiro solitário e sua amada amaldiçoada por um lich, de como o vilão torturou a mulher para obrigar o homem a cumprir tarefas das mais difíceis, que no fim o lich era irmão gêmeo do guerreiro, aliado de Sszzaas e a mulher irmã desaparecida dos dois, que se arrependeram em diversos níveis. O público não parecia especialmente interessado na trama, o bardo, percebendo a apatia, inseria pequenas ofensas ao público, que passavam despercebidas dada a generalizada embriaguez e desinteresse. Apenas um paladino de Khalmyr recém-chegado ouvia, reparando nas ofensas ao público e balançando a cabeça em aprovação. Grupos bebiam desregradamente no meio do dia, para o horror de Tomoe, a cerveja rala derramada por toda parte tornava o aroma ambiente convidativo para uns, como o é o cais com seu cheiro de peixe. Dois homens rastejavam no chão, barba suja de comida, cabelos emaranhados com coisas misteriosas e sujeira pura e simples, um deles tinha um caneco na mão e bebia o que errava o chão. Uma mulher grande e forte, cabelos longos, cacheados e loiros, com uma loriga segmentada, batia em um homem vestido com uma camiseta rósea esvoaçante, lhe esfregando o rosto na parede enquanto apontava para sua amiga que, corada, olhava para outro lado.
-Benvindos à Javali Perneta, no que posso lhes ajudar? – uma voz questionou por trás do elfo.
Era uma garota humana, pele morena do sol, cabelos castanhos e cacheados ocultos por um lenço amarelo, não media mais de um metro e meio. Ela aguardou, sorriso aberto, o rosto cheio de sardas se iluminou quando viu o elfo.
-Ooooi! Eu acho elfos muito legais! Lamento muito pelos goblinóides terem matado todos vocês! Meu nome é Janice, vou servir vocês hoje. Nooooossa, um cara de Tamu-ra! Morreu muita gente lá também, ouvi dizer, alguém da sua família ficou vivo?
Janice ficou aguardando pelo pedido enquanto Tomoe e Erudhir tentavam entender se aquilo fora dito como insulto ou troça. Por alguns momentos os quatro apenas se olhavam, até que alguém, que não ligava para toda aquela situação, quebrou o silêncio.
-Água, carne e pão – disse Eld – o samurai paga – completou.
-Espero que esta cidade nos traga oportunidades, paladino, nunca fui tão pobre quanto hoje. Para mim carne, queijo, pão e... não tens nada de Tamu-ra, tens?
-Temos um empregado que diz que o avô era tamuriano, serve? – informou Janice.
-Só carne, pão, queijo e cerveja – sentenciou Tomoe.
-Tem queijo? Quero – acresceu Eld.
-Pão, queijo e cerveja, talvez algumas batatas, se for possível – pediu um aturdido Erudhir.
-Claro, senhor elfo, o senhor é muito bonito, espero que sua família ainda esteja viva. Vou trazer tudo.
-Meu irmão teve uma filha, ela tinha o seu tamanho – Erudhir pegou carinhosamente a mão da menina, cerrou os olhos e fez uma breve prece, sussurrando palavras élfica, fazendo um leve brilho quente e dourado passou de sua mão para a da menina.
Janice olhou para ele, olhos esbugalhados, algo entre o choque, alegria extrema e êxtase.
-MAGIA DE ELFO! QUE L E G A A A L! Isso é muito bom, seu elfo, o que você fez?? – perguntou a menina.
-É algo que fazia por minha sobrinha quando morávamos juntos, ajuda a ter forças para o dia – ele sorriu – Pode nos trazer a comida agora? Estamos com fome – e sorriu novamente.
Ela saiu distraída olhando para a mão e sorrindo, no caminho anotou o que os três pediram, para não esquecer, se voltou para trás e olhou para o elfo, que ainda sorria com os olhos. Com vergonha deu um pulinho e saiu correndo.
-Não sabia que tinhas família, Erudhir, não havias nos dito nada – disse Tomoe, enquanto afrouxava a armadura para sentar de forma mais confortável.
-É, não disse – confirmou o clérigo, ainda sorrindo.
Eld olhou os dois, percebendo que algo estava sendo oculto pelo elfo, mas ele realmente não ligava. Se fosse importante descobriria, se Erudhir quisesse falar, não precisaria perguntar. Concluiu que não valia a pena falar nada. Não falou.
-Gente, uma hora vocês terão de parar de me ignorar, até porque era pra cá que eu ia trazer vocês, meu amigo está ali do outro lado. É o de cabelos brancos com um manto e lendo um livro, dá até vergonha dele – disse Lili.

*****

Uma hora antes.
-Até que é fascinante esta cidade humana, incômoda, mas fascinante. Não é o jeito de Allihanna, todavia Valkaria tem seus encantos. Os humanos são interessantes em seus modos toscos e apressados.
Tomoe se colocou em frente ao elfo, mãos posicionadas para sacar a katana.
-Cuidado com o que diz, elfo! Nós tamurianos também somos humanos! Chame meus ancestrais de toscos novamente e terei de esquecer nossa amizade e duelaremos!
-Não foi minha intenção ofender, Tomoe, apenas uma observação cultural de alguém mais velho. Em Tamu-ra se respeita muito a idade, não? Saiba que há dois séculos eu já era mais velho do que você é hoje – apaziguou o elfo.
-É bem verdade que respeitamos os mais velhos, porém não abuse – e relaxou a postou de ataque.
-Que vergonha, um samurai abaixando a guarda no meio de uma luta – disse Eld.
Tomoe se voltou para o paladino, postura de luta refeita, olhos de um guerreiro. Eld, porém, não fazia a menor menção de pegar a espada, o escudo jazia intocado nas costas.
-Pfff, do outro lado, samurai – apontando para algo atrás de Tomoe.
Uma pequena confusão se anunciava. Pessoas aglomeradas gritavam, vozes misturadas falavam muitas coisas diferentes ao mesmo tempo. Todavia uma voz era ouvida com clareza.
-CÊ TÁ LOUCO, CARA? FALA NA MINHA CARA ISSO OUTRA VEZ, SEU BOSTA!
Tomoe foi em direção à comoção, seguido por Erudhir e Eld. Várias pessoas já se acotovelavam para assistir seja lá o que estivesse acontecendo, eles avançaram na multidão, o samurai na frente, sem pedir por favor uma única vez, apenas caminhando, puxando e empurrando toda aquela gente que teimava em não abrir caminho. Então ele viu.
-Erudhir, estão atacando uma criança! – avisou.

*****

Depois, na taverna.
Lili voltou para a mesa dos três com um homem alto, cabelos brancos, pele clara e orelhas pontudas.
-Bain, esse é o Erudhir, esse Tomoe e esse aqui o Eld, ele é mudo, acho.
-Olá, é um enorme prazer lhes conhecer, há muito tempo não via um tamuriano ou um elfo, me solidarizo com suas dores – cumprimentou Bain, dobrando levemente o corpo e levando a mão até o peito.
Tomoe se curvou levemente, mãos rentes ao corpo.
-Também é um prazer.
Erudhir se adiantou.
-Que Allihanna lhe abençoe, caro amigo – e abraçou o feiticeiro – Já vi muitos elfos, você parece, mas não é um. Aggelus?
-Sim, somos raros, impressionante que tenha percebido, impressionante mesmo, sou idêntico a um elfo – admirou-se Bain.
-Você não cheira como um – riu o elfo.
-Não gosto de magia arcana – comentou Eld, estendendo a mão para Bain, olhos sérios e plenos de justiça.
-Ah, ok, vou tentar lembrar disto. Ã, Lili, como você os conheceu? – quis saber Bain.
-Eles se meteram em uma briga, foi uma confusão. No fim tive que salvar os três – ela olhava e sorria para o aggelus.

*****

Antes, nas ruas de Malpetrim.
A turba cercava a garota, uma halfling, que era confrontada por um homem bastante irritado. Pessoas se acotovelavam para melhor assistir, na esperança de ver um pouco de sangue, alguns gritavam pela milícia, outros gritavam para deixar que eles se resolvessem sozinhos, seria mais divertido e educativo para as crianças que ali estavam.
-Falo quantas vezes precisar, bandidinha! Devolve o meu ouro! Ou vou levar você pra guarda, só que antes vou te quebrar toda! – ameaçou um homem, muitos músculos e litros de cerveja, pouca noção do que fazia no meio da rua.
A garota parecia chocada, uma leve contração no rosto demonstrou o asco que sentia ao ouvir a acusação. Ela revirou os olhos e respirou entre os dentes.
-Cara, cê não tem noção das coisas, não? Por que euzinha iria roubar? Olha pra mim, sou linda, cheirosa e maquiada, faz favor né! A minha bota de couro vale mais do que você inteiro! – argumentou a halfling.
-Esvazia os bolsos então! – gritou o homem.
-Eu nem tenho bolsos, olha! Essa minha calça é de grife! – e mostrou que não tinha onde colocar a tal bolsa.
Ela mostrava a calça, a falta de bolsos, a idiotice do homem que acusava sem provas. A população ali reunida começou a rir da situação, fazendo pouco do homem, alguns gritavam que ele tinha gasto tudo com bebida e não queria apanhar em casa. A pequena garota ria do sujeito, gargalhava ao ponto de balançar. Então a bolsa de ouro caiu de algum lugar abaixo dos seus cabelos.
-Opa – Lili olhou para o homem, que agora tinha a companhia de outros, indignados com a pequena ladra.

*****

Depois, entre amigos.
-Permita-me apenas corrigir algo que a pequena disse – pediu Tomoe.
-Meu anjo, não tem nada para corrigir, até porque né, já passou, quem vive de passado é museu e clérigo de Tanna-Toh, ou então bardo, mas só um dos três ganha dinheiro com isso. Vamos tocar a vida e esquecer tudo – pediu Lili, fazendo parecer que não pedia.
-Não posso deixar as coisas assim, aconteceu de forma diferente – tentou Tomoe novamente.
-Vocês brigaram, não? Tirei vocês de lá, não? Como que aconteceu de outro jeito, samurai? Tá dizendo que eu tô mentindo? Quer fazer parecer que não aconteceu o que falei? Cadê a honra dos tamurianos? Lin-wu tá vendo! – Lili olhava nos olhos de Tomoe.
-Eu, bem... – o samurai não sabia como continuar.
Tomoe não conseguia avançar na discussão, a pequena mulher tinha a língua rápida e feroz, fazia voltas, enganava, ele odiava aquilo, porém não conseguia encontrar qualquer brecha para se opor. Para piorar, era uma mulher, ele sequer podia propor um duelo. Ele fora derrotado e sabia.
-Ela roubou um cara e foi pega, cercaram, ameaçaram dar uma surra, e começaram a dar uma surra, até, ela começou a gritar. Salvamos a diaba e ela fugiu. Fomos atrás e agora ela diz que nos tirou da briga. Pfff – disse Eld.
-Odeio paladinos – suspirou Lili.

*****

Antes, fazendo amigos.
O homem avançou, deu três passos firmes em direção à halfling, enquanto andava tirava do cinto um porrete quase do tamanho da adversária. A arma de madeira desceu violenta para encontrar terra seca, a jovem, de forma ágil, desviou do golpe enquanto sacava sua adaga. Ela ainda estava no chão quando outro homem avançou da multidão e tentou um chute, acertando apenas o ar, a garota de calça de grife desviava graciosamente, fazendo parecer fácil. Ela sorriu, eram apenas bêbados mal treinados. Então veio a dor. Um chute nas costelas vindo de trás, um rapaz, não mais de quinze anos, emergiu da turba sem fazer barulho para atacar sorrateiramente. O golpe a fez perceber sua situação, estava cercada por pessoas hostis e bêbadas, algumas querendo ver sangue. Ela sentiu outro golpe pelas costas, cuspiu sangue no chão, o frio do metal ainda se fazia sentir. Nas mãos de um dos homens uma espada curta pingando sangue.
-PAREM JÁ, MALDITOS, COMO OUSAM ATACAR UMA DAMA, UMA INFANTE, DIANTE DE MEUS OLHOS! RECONHEÇAM SUA POSIÇÃO E SAIAM DAQUI – vociferou Tomoe, abismado com a falta de modos, com a incapacidade daqueles homens e mulheres de se colocar em seu devido lugar.
Todos olharam para aquele estranho homem com olhos assassinos que gritava. Porém o que lhes verdadeiramente impressionava era a espada em suas mãos, que emanava uma leve chama, os mais próximos percebiam não ser uma ilusão, era quente. O metal parecia incandescente, o samurai, entretanto, não sentia qualquer dor, segurava o cabo de maneira firme e ameaçadora.
-Deixem a garota em paz ou tentem sua sorte comigo – ameaçou ele.
Lili não perdeu tempo, a vida sempre lhe mostrara que oportunidades foram feitas para serem aproveitadas. E ela aproveitou. Enquanto o homem fazia o discurso e ameaçava os outros, ela atacou. Com um salto rápido chegou até o sujeito do porrete e atacou com a adaga, lhe ferindo fundo o pé direito. O sangue jorrou, o fazendo soltar a arma e gritar. Como que libertos do transe os outros atacaram, Lili se esquivou do primeiro, do segundo, porém o terceiro estava em seu ponto cego e com uma espada curta, novamente. Ele era bom. O homem baixo investiu contra a halfling, ela não conseguiu desviar, pôde tão somente se preparar para o golpe que não veio. Ouviu apenas o som de metal contra metal. Um escudo surgiu ao seu lado, preso ao braço forte de um homem armadurado.
-Pffff – disse ele.
Tomoe investiu, espada em punho, pronto para matar o bastardo que atacara a criança com uma arma letal. Então parou. Sob seus pés pequenas plantas lhe atrapalhavam o movimento, o mesmo abaixo de todos em uma grande área ao seu redor.
-Ei, acho que já está bom, certo? – gritou Erudhir, além da multidão.
-Tomoe – chamou Eld.
-O que foi? – perguntou Tomoe, irritado com a briga interrompida.
-Ela fugiu – disse o paladino, dando de ombros – pode ficar e brigar, mas estou com fome. Vou embora.
-Também estou, vamos – aceitou – eles não valem a pena – disse olhando para os homens presos na magia da natureza, enquanto guardava sua espada na bainha e fazia o brilho do fogo sumir.
-Outra coisa, Tomoe, não é uma criança, é uma halfling. É tão básico que não quis falar antes. Vamos – acrescentou o paladino, nenhum sorriso de vitória no rosto, apenas o reflexo da justiça.

*****

Depois da confusão, antes da taverna.
-Sabem, me sinto menos amoroso para com Malpetrim - disse Erudhir.
-Vai piorar – acalentou Eld.







Ilustração de Amanda Mattos Della Lucia.

Sob a Lua de Ragnar | Prólogo | Parte 1

VOLUME I - SOB A LUA DE RAGNAR

Prólogo




-Elfo, quanto tempo falta para chegarmos?
-Menos do que eu gostaria, não sente o cheiro?
-Só de mato e bosta de cavalo, em Tamu-ra isto queria dizer longe das cidades.
O elfo é conhecido como Erudhir Stalkingwolf, longos cabelos loiros, penetrantes olhos de um profundo azul índigo, pouco comum mesmo entre os de sua raça. Sua armadura de peles e o arco curto velho explicitam a falta de recursos. Ao seu lado caminha um humano de pele queimada do sol, olhos estreitos, cabelos pretos amarrados em um coque no alto da cabeça, o corpo forte e alto coberto por uma brunea limpa e puída, na cintura, do lado direito, duas espadas de aparência imponente. Atrás dos dois um humano anda cabisbaixo, alto, forte e atlético, cabelos castanhos escuros e olhos da mesma cor, uma armadura semelhante a do outro guerreiro, porém mais vezes danificada e consertada, na cintura uma espada longa. Os três caminham por uma estrada larga e pavimentada, algo não muito comum em Petrynia. Nas margens se fazem notar fazendas com plantações, alguns homens e mulheres arando e cuidando de animais, o sino de uma carroça cheia de frutas, verduras e queijo pede passagem ao grupo.
-Erudhir, talvez ele tenha algum problema, desde que nos conhecemos, contando nossa conversa e posterior acordo, não acho que ele disse mais de dez palavras. E estou contando quando ele nos disse o próprio nome.
-Nem todos os seres são eloquentes, bom samurai. Algumas criaturas têm sua vida no silêncio e esta também é a forma de agir da natureza, de Allihanna. Do mugir do gado que produz a bosta que tanto lhe aflige nas estradas do continente, ao silêncio de nosso amigo paladino.
-Um homem deve se expressar! Ele age como uma mulher! E que tipo de nome é Eld? – desta vez o samurai parou em frente ao homem, olhos nos olhos – Tu não tens um fio de barba, és um homem mesmo?
-... – respondeu o paladino.
-Chamei-te de mulher e apenas te calas? – provocou o samurai.
-Deixe o sujeito, Tomoe. Homem, mulher, qual diferença faz?
-Se nos engana quanto ao próprio sexo, imagine o que mais esconde – provocou novamente o samurai, olhando o paladino pelo canto dos olhos.
-Khalmyr não vê a mentira com bons olhos, samurai – disse Eld – além disto de onde venho não é a barba que diz quem é ou não homem, você deve olhar em outro lugar.
Erudhir riu e passou o braço direito sobre os ombros de Tomoe.
-Meu caro e rígido amigo, você poderia dormir esta noite sem ter ouvido isso. Vamos, veja, aqueles são os muros da cidade! Venha, Eld, vamos para a tal cidade que você diz ser um ótimo início para uma busca.
-E é – confirmou o paladino de Khalmyr.
-Estás falante, já dobraste o número de palavras em nossa presença, logo serás um orador – riu Tomoe, dando dois tapinhas no peito de Eld – Sem ressentimentos, paladino, gosto do teu deus, não deves ser má pessoa.
-Acho que foi um elogio, Eld – disse Erudhir.
Os três caminharam mais alguns metros, viraram à esquerda em um pequeno grupo de árvores e lá estava o portão da cidade.
Erudhir deu um passo à frente.
-Então essa é Malpetrim. Não é a mais bonita cidade humana que vi, nem a mais cheirosa, tão pouco a mais organizada, mas vamos nessa.
Tomoe cutucou Eld.
-Acho que foi um elogio, Eld. Agora é conosco, o clérigo de nada valerá lá dentro.
Eld deu de ombros, manteve o passo e seguiu atrás dos dois companheiros. Acima deles, observou, algumas nuvens navegavam pelo azul do céu, escondendo Azgher e criando uma repentina e refrescante sombra. O dia estava bonito, as nuvens se alinhavam sobre a cidade, perfeitamente simétricas. Ele sorriu; se acreditasse em superstições pensaria que Khalmyr o guiara até ali.

*****

Arton é um mundo de muitas raças, dentre elas a mais numerosa é a humana. Os humanos foram criados por Valkaria, a deusa da ambição, que lhes incrustou esse sentimento profundamente nos corações. Os humanos têm a bênção da deusa, sempre buscando mais, ao mesmo tempo é sua maldição, jamais estando satisfeitos. O que talvez explique o enorme número de cidades humanas. Malpetrim é uma destas cidades, localizada em Petrynia, na costa oeste do Reinado, que consiste, basicamente, em um aglomerado de reinos que tentam, sempre que possível, não atacar um ao outro gerando guerras e destruição. Não que isto preocupe os moradores de Malpetrim, pois esta é uma cidade diferente em um reino diferente. Petrynia é possivelmente o reino com o maior número de boatos e lendas de todo o Reinado, mas é em Malpetrim onde as lendas alcançam outro patamar, elas se tornam reais. A cidade foi e é palco de momentos decisivos da história de Arton, lar de heróis e aventureiros. Qualquer novato que procure fazer nome sabe que o dinheiro está em Valkaria, em Vectora, mas as oportunidades? Ora, Malpetrim.
Todavia não só de heróis, aventuras e histórias se faz uma cidade. Toda esta movimentação acabou, com o tempo, gerando uma série de oportunidades para o comércio e a vila de Malpetrim, que não passava de um povoado de pescadores, onde fazendeiros locais vinham fazer negócio, cresceu para se tornar a cidade de Malpetrim, famosa em todo o Reinado. A fama fez mais do que trazer aventureiros e comerciantes, fez crescer uma pequena feira que ocorria todo ano, onde plantadores de trigo trocavam sua plantação por algumas galinhas, vacas e talvez um trobo para arar a terra. E quando nossos três amigos passam pelos portões, eles também adentram à mundialmente conhecida Grande Feira de Malpetrim, o melhor lugar do mundo para se começar uma boa aventura.

*****

Apesar do rosto jovial, ele já caminha neste mundo há mais de dois séculos. Ainda assim não tinha, até então, visitado a Grande Feira. Por onde passa é inevitável que chame a atenção. Alto, magro, orelhas pontudas, olhos azuis claros, longos cabelos prateados soltos sobre uma túnica de um verde quase negro, na mão um cajado.
-DROGA, OLHA POR ONDE ANDA, SEU MERDA! – gritou alguém abaixo, logo ao seu lado – JOGA A PORRA DE UM RAIO NESSE INFELIZ, BAIN! AINDA BEM QUE USO SAPATOS!
O homem ofendido olhou para baixo, surpreso com o vocabulário de uma criança.
-Isso não é coisa para uma menininha falar, menininha...
Foi, porém, interrompido por um chute na canela.
-Agradeço pelo menininha, mas já sou uma moça – disse uma halfling, cabelos tão negros quanto os olhos, não mais de noventa centímetros, corselete de couro, calça de couro, duas pequenas adagas. E sapatos.
-Lili, por Wynna e Marah, ande atrás de mim! Deste jeito você será pisada por cada habitante e cada habitante será ofendido por essa sua boca suja. Há vinte metros atrás uma criança pisou em você! E não xingue as pessoas na rua, não quero arrumar problemas!
-Não vou ficar atrás da sua saia! Vamos ali na taverna e você usa aquele raio de fogo para esquentar a comida, aqui comem tudo frio, é um horror. Não que a comida daqui seja boa, mas alguns pratos têm temperaturas ideais para apreciação. Em Hongari gente foi exilada por menos.
-Magia não serve para esquentar comida – salientou Bain.
-Desconheço uso mais nobre – retrucou Lili.
-Então seu conhecimento acerca do mundo, das coisas e tudo mais é parco, pobre, limítrofe e me solidarizo aqui com a pujança de sua ignorância, cara.
-Eu sei que você me ofendeu. E você sabe que fica sem a sacola de dinheiro se não esquentar minha comida. Esta conversa é inútil. Seja mais prático, Bain. Eu sei, você sabe, em meia hora você vai estar fingindo que não fez nada e eu estarei comendo carne quente com queijo macio e cremoso.
Bain não argumentou, não adiantava. Ele sorriu e procurou uma taverna limpa. Uma tarefa difícil em uma cidade portuária. E Malpetrim era uma cidade portuária com uma Grande Feira. Uma cidade portuária com uma Grande Feira que recebia piratas com regularidade. Uma cidade portuária com uma Grande Feira que recebia piratas com regularidade e era lar de aventureiros em tempo integral.
Lili fez Bain não ser muito exigente depois da procura já durar uma hora. Eles entraram, procuraram uma mesa longe da confusão e fizeram o pedido, que foi entregue frio.
-Depois de comer vou trabalhar um pouco, procurar informação. Você sabe – esclareceu Lili.
-Na verdade prefiro não saber – disse Bain enquanto esquentava um pedaço de carne para a halfling.
-Tanto faz. Aqui ao anoitecer? – indagou ela.
-Não pretendo sair daqui até lá, comprei um livro e esta taverna é suficientemente calma para que eu leia.
-A Grande Feira está lá fora e você vai ler um livro? – perguntou Lili, braços apoiados na cintura.
-A Tormenta chegou em Arton e pessoas se preocupam com queijo cremoso e carne quentinha – desafiou o feiticeiro.
-Não entendi seu ponto. Faz parecer que queijo cremoso e carne não são importantes.
-Só pega a carne, Lili, só pega a carne – disse Bain, olhos mirando o teto da taverna em contemplativo desespero.





Ilustração de Amanda Mattos Della Lucia