terça-feira, 29 de janeiro de 2013

Minhas mais doces memórias.



- Não! Eu não vou passar nada!
- Vô ti dexá com dos furo, filho da puta! Mim dá!
- Já falei que não! É minha, cansei dessa palhaçada. Eu decido o meu futuro, não tu!
- I eu cansei di ti, vacilão.

Foi quando ele apontou a arma para minha cabeça, quando vi o dedo se afastar. Olhava para ele e lembrava do Carlos, meu amigo quando criança. E aquele dedo cada vez mais longe.

*****

Minha mãe está me encarando, não enxergo direito, as coisas estão embaçadas. Procuro meus óculos, ou seria meu óculos? Essas palavras difíceis, sempre falei meus óculos, termina com “s” então é plural, meu primo diz que é meu óculos, porque é só um, se eu tivesse um de sol seria meus óculos. Não deixa de fazer sentido. Desde pequeno uso óculos, desde que me lembro troco shampoo por condicionador, uma vez gastei meio pote de condicionador porque ele não fazia espuma, mas nunca foi tão fácil pentear meu cabelo. Fazer o que, é o preço, no banho tinha de tirar os óculos. Shampoo que não arde. Ela diz que está na hora de acordar, que é hora de ir para a escola e que meu pão já está pronto. Levanto, dou alguns passos com meu pijama do Jaspion até a cômoda e tateio procurando a armação. No ensino médio as coisas estão melhores, um pouco, já até converso, me sinto um pouco melhor. Tem uma menina, ela é linda, o nome é Paula, acho que ela gosta do Gustavo. Não consigo achar os óculos, vou para o lado e dou uma topada na cômoda, é a pior dor do mundo. A educação física sempre é ruim, tomo bolada, sempre levo uma na cara e os guris riem porque meus óculos caem, acho que fazem de propósito. Meu pai me deixa na escola, a professora me leva até a sala, hoje é dia de pintar e fazer boneco de massinha, vou fazer o Jiban, ontem ele morreu, fiquei triste. A lareira queima enquanto o pai e a mãe brigam, a Tahiana também está aqui, dou um beliscão nela. Com o Henrique e o Carlos vou andando para o terminal de ônibus, passamos por um mendigo e ficamos com medo, corremos até cansar. Meu dedo ainda dói, engulo o choro. Passei no vestibular para jornalismo, toda a família comemora, vamos a uma pizzaria e meu pai paga tudo, ele e minha mãe se abraçam e beijam. O Gustavo começa a namorar com a Paula, eles parecem felizes juntos. Minha sobrinha faz dois anos e ainda não fala, a Tahiana me conta chorando que ela tem paralisia cerebral. Jorge chuta a bola tão forte que meus óculos quebram antes de cair no chão, eles olham assustados, a Camila está chorando, estou enxergando vermelho do lado esquerdo. Meus pais param de brigar com a Tahiana chorando, falo que ela não gosta que eles briguem. Foi a última vez que os vi brigando. A Letícia gosta do Marcos. Não acho os óculos de jeito nenhum, chamo minha mãe, quem aparece é minha irmã. Odeio jornalismo, me sinto bem melhor fazendo Sistemas de Informação. Luke morreu, enterramos no quintal com a roupa dos Changerman dele. A Camila gosta do Pedro. Chorei no quarto o dia todo de saudades do meu avô, a Vi ficou deitada do meu lado o tempo todo. Último dia de aula, amanhã é o vestibular, saíamos para beber, não lembro como a blusa daquela menina foi para na minha mochila. Passamos outra vez pelo mendigo, o Carlos joga alguma coisa nele, fiquei com pena, mas com medo de ir lá. Uma dor de cabeça me incomoda há dias, minha mãe me obriga a ir ao médico, a Vi também. O senhor Afonso me contrata como programador depois de um ano estagiando, meu salário triplicou, vou para casa contar para a Eduarda. Minha irmã diz que meus óculos não deviam estar lá, que a culpa não foi dela. Uma casa verde com janelas brancas. Três garotos me batem dentro da sala, durante o lanche, a Camila começa a chorar e eles saem correndo. Não passa mais Jaspion na televisão, fico revoltado. A Viviane diz que sou o cara mais legal que ela conhece, diz que precisa me dizer uma coisa e me rouba um beijo. Estrada rosa com meio-fio cor de bocejo. Encontro o mendigo que corríamos quando éramos crianças, ele está andando em minha direção. Minha primeira vez e da Duda, a Tahiana chegou em casa de repente, quase nos viu. Vou passar as férias com meus avós, o vô está doente, jogo videogame com ele quase todo dia. O médico tem uma cara séria. O mendigo tem alguma coisa embaixo da blusa, ele quer minha carteira. A Eduarda gosta do Miguel, vadia, podia ter me dito. Uma abóbora falou comigo, o coelho vai ser rei, dominou o país dos gatos. Tenho câncer, é terminal, a Vi diz que vai ficar do meu lado durante todos os dois meses.

*****

Vejo um bombeiro, não enxergo direito, as coisas estão embaçadas. Procuro meus óculos, minha cabeça dói. Fecho os olhos para descansar um pouco.

sexta-feira, 25 de janeiro de 2013

O grito do aço - Os olhos de paz | Parte 02.



O couro encharcado da armadura chia a cada movimento, com as mãos ele protege os olhos da água que cai, imóvel, atento ao que acontece, a chuva pesada dificulta a visão do tecido azul, é necessário precisão, um descuido pode por a vida de todos em risco, por trás de seus ombros dezenas de homens produzem uma sinfonia de sons, do metálico choque das espadas ao envergar dos arcos, o ataque é eminente. Duzentos metros os separam da cidade, entretanto o véu imposto pela chuva se mostra um desafio mesmo aos melhores olhos dos melhores dentre aqueles homens. A ansiedade cresce, o nervosismo se espalha, alguns perguntam se os batedores estão mortos, não é possível ouvir o bardo, apenas o som da água açoitando o solo e as folhas e galhos das árvores. Por um segundo brilha o céu, um raio acende o ar acima de suas cabeças e ilumina um homem, ao longe, que acena de forma ritmada algo azul. Todos aguardam o aval de Dorian, pares e mais pares de olhos cravados no braço levantado do homem. Ele avalia, quer ter certeza, sua mão aponta para a terra, eles avançam. O chão treme sob seus pés, sua ira é muda, o silêncio é um aliado.

*****

O deus que favorece a batalha prega peças ao esconder o bardo daqueles sob as quase invisíveis árvores próximas das montanhas. Enquanto Aegir balança o tecido veio do céu um clarão, seu som ecoou sob a forma de passos que fizeram a terra sob seus pés tremer. Por um segundo o medo lhe gela a alma, ao seu lado outros oito sentem a mesma sensação. A estratégia de eliminar os guardas em cidades pequenas já foi utilizada muitas vezes, em igual número ele presenciou o ataque fulminante que a sucede, em todas, por este pequeno instante, o medo tomou seu coração, seus instintos mais básicos berram para que as pernas corram, o perigo é evidente mesmo para os aliados, para aqueles que sabem o que virá e gozam da proteção da amizade. Ao povo desta cidade não resta qualquer esperança.

*****

Não deixem vivalma!”, gritou Dorian. “Pela glória, pela honra, que o solo trague o sangue de nossos inimigos como sacrifício! Tomem tudo o que for nosso, o ouro, a prata, os panos, as mulheres, os louros da vitória! Não ousem tocar na miséria e desesperança, pois estes pertencem aqueles que aqui vivem!!

O descampado entre a floresta e a cidade logo é vencido, alcançam os muros, Aegir os segue tocando, agora, com seu alaúde, cantando épicos de outras batalhas, lembrando aos homens de suas aventuras, batalhas e prêmios, dos batalhões destruídos, das vilas incendiadas, das belas donzelas seduzidas, das belas donzelas convencidas a serem seduzidas. Uma vez a tempestade é aliada, as ruas barrentas estão desertas, música e risos são ouvidos no interior das casas. Assim agem estes homens, primeiro os lares, deixem os bêbados e príncipes para o final, destruam as famílias, matem os homens, tomem as armas. Estas são as ordens de Dorian, assim é feito. Dividem-se em grupos de cinquenta e espalham o terror. Portas são derrubadas, o riso roubado dá lugar à surpresa e, logo, ao medo e ao desespero, porém ainda é cedo, o inferno apenas teve início para estes fracos seres humanos, para as crianças, que serão vendidas como escravas, para as mulheres, que saciarão as vontades destes homens a tanto afastados de suas esposas, dos velhos, homens e qualquer outro que se mostrar indócil, que em breve terão lugar especial na posse de Karnak por Dorian. O choro e os gritos logo tomam toda a cidade, em alguns pontos é possível ver o clarão do fogo, homens saem de bares trocando as pernas, têm a cabeça extirpada do corpo antes de saberem qual perna é a esquerda, igrejas são trancadas, clérigos assam no altar em chamas. As lufadas de ar quente aquecem Aidil, o sangue de seus inimigos esfria rápido demais, seca e deixa o aroma férreo por todo seu corpo. Junto de cinco outros ele derruba a porta de um casebre, desvia do golpe de foice do morador e no mesmo movimento lhe apresenta Beatriz, sua espada, herdada de seu pai, que a herdou de seu avô, que provavelmente a roubou de um nobre qualquer, o homem se contorce no chão até receber o golpe final que lhe atravessa o crânio. Logo ao lado a viúva tenta proteger os dois filhos sob os braços, ela olha em desespero para o homem alto coberto de sangue, cabelos castanhos empapados com a vida de muitos dos vizinhos, ele avança, a criança grita de pavor, a mulher o encara, os olhos verdes inundados de desespero. Aidil não fica indiferente à cena, ele sorri.

Dorian é um líder sábio, sabe que seus subordinados têm grande capacidade de guerrear, ao mesmo tempo em que tem ciência de sua inaptidão para as sutilezas da arte da guerra, as quais ele utiliza em campanha. Tal característica fez de Dorian um líder como nunca antes houve, nascido fazendeiro rapidamente se tornou guerreiro, fez fama, ascendeu até o topo, desafiou o antigo general, tudo isto antes de seus vinte anos. Cada batalha o tornou mais forte, aprendeu com os inimigos, e foram muitos professores, hoje, mais de quinze anos passados, é um soldado maduro, letal, poupa a vida de seus homens em batalha, procura agir antes pelo intelecto, para, depois, com maior aproveitamento, utilizar o poder militar, todavia sabe que para reinar precisa mostrar, acima de tudo, força. Seus homens aplaudem suas vitórias, a glória conquistada por seu povo, a riqueza, todavia é necessário mostrar que ele, Dorian, é razão para aquilo, que seu braço forte os guia e rege o modo como a roda da fortuna os favorece. Assim, ele caminha em direção ao príncipe e sua guarda, irá tomar aquela cidade com as próprias mãos. Com a espada ainda imaculada ele avança, em meio aos berros de dor e ódio, para o prédio central, onde vive o príncipe e estão os alojamentos dos mercenários, o local mais seguro e de difícil acesso da cidade, sua lâmina não aceita o sangue de agricultores, prostitutas ou comerciantes, mães ou heróis de ocasião. Ele ri ao lembrar a história de Aidil sobre a espada do avô, a sua, entretanto, é diferente. Brenda foi feita com as coroas dos nobres derrotados desde tempos remotos, nem sempre ela mediu um metro e cinquenta e cinco, cada reino destruído, uma nova coroa anexada, uma forjadura se fazia necessária. Do alvo, do prédio central, ecoa um sino, é o alarme. O fogo trepida ao fundo, a imagem de Dorian é assustadora, com a enorme espada em mãos, sem demostrar dúvida, sem escudo, sem defesa, sem necessidade de uma, passos firmes em direção à construção, gritos se fazem ouvir por todo seu caminho e atrás das colunas de fogo, é o arauto da destruição, um deus encarnado, sua armadura de cota de cota de malha iluminada pelos incêndios parece em brasa, viva, as sombras em seu rosto afugentam a coragem do inimigo, sua espada é puro fogo. Este é Dorian, este é o chefe e general dos povos da planície de Ebene. Este é o novo senhor de Karnak.

*****

O vinho desce suave, uma das melhores safras dos últimos anos, cada gole um novo deleite, no chão forrado por finos tapetes e macias almofadas, Anderson Flyman, príncipe e homem mais rico de Karnak grita com sua esposa. “Mais vinho, mulher! Esta chuva maldita estragou nosso joguinho ao ar livre, então só resta beber, hahahahaha!” Resignada, Karina, serve mais vinho para o marido. “Todos, vamos, o vinho é o bem maior de um homem, brindemos à chuva que nos trancou em casa e aos raios que assustam nossas crianças!” concluiu. “Que bela cidade.” disse Oldenor, um velho mercador de Nelas, reino vizinho, enquanto mostrava para Flyman alguns contratos de interesse mútuo, “Como pode ver, há grande possibilidade de lucro fácil, vamos ficar ainda mais ricos à custa daqueles agricultores estúpidos e...” dizia o comerciante ao ser interrompido pelo som de um sino. “É o alarme! Verifiquem o que há de errado, espero que não seja outro bêbado.” ordenou o príncipe. Houve movimentação, Karina recolheu as pesadas cortinas que cobriam as janelas e um grito de horror tomou todo o cômodo ricamente enfeitado. O prédio do príncipe é localizado em uma pequena elevação na parte central da cidade, no meio de um jardim circular de aproximadamente cinquenta metros de raio, porém, este jardim, no momento, os separava apenas dos escombros escaldantes do que já fora Karnak. A guarda corre ao príncipe “Senhor, a tempestade abafou os sons, não sabemos bem o que aconteceu, o certo é que estamos cercados, bárbaros destruíam e saquearam a cidade, temos apenas dez homens armados dentro deste edifício contra mais de duzentos inimigos.” Os corações na sala pesaram, lá fora um mar de labaredas dançava com o vento. O pânico toma conta de todos os presentes. “O que devemos fazer, senhor?”, “Quais suas ordens?” perguntavam. “Cortem a língua do nosso ilustre visitante, façam com que ele durma e não o machuquem no processo.” respondeu Flyman. “Estas louco, homem? Sabe quem sou? Tenho posses que poderiam comprar esta cidadezinha dez vezes!” se irritou Oldenor. “Isto é de fato impressionante, caro amigo, porém, no momento, eu tenho dez soldados a mais do que você. Rápido, guardas, façam o que foi ordenado. Temos apenas alguns minutos.

Do lado de fora um homem, seguido por cerca de trinta outros, anda calmamente pelo caminho pavimentado até a entrada do prédio, sua espada enorme em uma das mãos, os olhos brilhando como uma fera.

quinta-feira, 17 de janeiro de 2013

O grito do aço – Os olhos de paz | Parte 01.


Há dias o leito de Aidil é a relva gelada das planícies que, sem perguntas, o aceita e oferece aconchego para o corpo cansado. Deitado, depois de marchar por um dia inteiro, tendo apenas breves paradas para comer e descansar, ouve os insetos voando, mata algo lhe que subia o braço esquerdo e esfrega as pernas doloridas. O ar gelado o incomoda, já não é mais um jovem, as articulações doem, os músculos se vingam das agressões pretéritas, ele ajeita as peles novamente enquanto amaldiçoa alguém que não está ali. Olha então para o alto e observa uma nuvem gigantesca que cobre gradativamente o céu noturno, estrela por estrela, insaciável, sempre em frente. Opondo-se a ela está a lua crescente, como um general, firmemente postada orientando seu exército que sucumbe, um a um, perante aquela sombra que tudo consume. Entretanto, ela não se move, não recua, não avança, apenas espera ao lado de seus homens o sussurro do destino último de cada soldado, aceita sua sina e seu brilho parece, agora, mais poderoso do que nunca. Ele sorri, há beleza naquilo, há honra, Aidil dormiu satisfeito, amanhã a natureza seguiria seu curso, assim como no céu escuro. Ao seu lado pouco mais de duas centenas de homens dormem acompanhados da mesma relva, da mesma certeza, recuperando forças para o dia seguinte. Acima deles o embate continua.

*****

A noite ainda lança seus tentáculos sobre o mundo, porém todos marcham em longas filas, enquanto se aproximam daquilo que os motivou a abandonar seus lares e famílias. Mastigam pedaços de carne ou pão, as botas pesadas marcando o campo, o som das espadas e escudos ecoando no descampado. Um riso aqui, uma maldição ali, poucos falam, a brisa fria os deixa mais inclinados a reflexões pessoais do que conversas. O sol nasceu e o silêncio se manteve. Caminham até que o fim da planície, a sua frente uma montanha, Aidil faz sinal para que todos subam. No céu uma nuvem escura cobre tudo, tornando o sol pouco mais que uma lembrança, trovões fazem parecer que gigantes duelam e atiram pedras uns nos outros, o vento frio lhes corta a pele e algumas gotas de chuva marcam a rocha. Chegando ao cume podem ver seu objetivo no fundo do vale: Karnak. Uma pequena cidade sem tradição guerreira, localizada no meio de uma grande rota comercial, um alvo fácil, é possível sentir o cheiro do ouro, das sedas e das mulheres. Entre os homens se inicia uma agitação, a presa foi avistada, atacar é mais que um desejo, se faz necessidade. É quando um homem de olhos escuros e calmos, portando uma espada com não menos que um metro e meio, sem escudo, se posta à frente do grupo e pede a palavra. Seu nome é Dorian, líder e general do grupo.

Diante de nós está a razão pela qual passamos dor e frio, o motivo pelo qual ficamos sem nossas mulheres!” Ele faz uma pausa para que os homens possam rir. “Aidil, talvez para ti esta não seja uma situação ruim, não é? Já almocei em tua mesa e comi o que Olga prepara, todos podem ver teu sorriso por estar aqui!” Risos irrompem. “Posso ver nos olhos de cada um o fogo que nos move! Por dias marchamos, enfrentamos com nossos corpos as destemperes da natureza, punidos pelo sol, açoitados pelo vento, mas aqui estamos. O chão frio nos foi leito, sem o calor de nossas mulheres para acalentar a dor, sem nossos filhos para abraçar, mas aqui estamos.” Urros de aprovação são silenciados por sinais de Aidil e Dorian. “Agora, do outro lado desta montanha está Karnak, nosso butim nos espera, nosso espólio merecido está próximo! Vamos pegar o que é nosso, mas com cautela, em silêncio, não quero dar más notícia para a família de nenhum dos meus amigos aqui presentes. Que os deuses nos favoreçam, que o sangue de nossos inimigos sacie a sede de nossas espadas, que lave o chão e sacie Gundör, que ele nos faça fortes!

Todos levantam os braços, espadas em punho apontando para céu, sem gritos, sem urros, Dorian acordou o guerreiro dentro de cada um daqueles homens, entretanto isto não os fará dar ao inimigo a chance de os ouvir. A descida é difícil, pedras soltas, a chuva tornou tudo escorregadio, há lama, a jornada se torna lenta. Alcançam o pé da montanha e procuram abrigo entre as sombras das árvores do vale, o dia nublado é uma vantagem. Aguardam, muitas vezes pilharam outras cidades, sabem como proceder, por isso esperam por Aegir. Podem o avistar ao longe, caminhando com uma flauta, tocando e dançando para os poucos guardas visíveis da cidade. Aegir é um homem competente no que faz, os guardas olham apenas para ele, encostam suas lanças no muro e batem com as mãos nas coxas enquanto ele os entretém cantando, tocando, fazendo piadas, fazendo perguntas. Ele arranca risadas e informações com o poder de sua lábia, com a graça de sua dança, com notas dignas do menestrel de um rei. De repente uma cambalhota, é o sinal, não há outros guardas próximos. Avançam dois grupos de quatro homens, evitam correr, o solo está molhado e escorregadio, o som de seus passos nas poças pode os entregar. Ainda assim seguem, cautelosos flanqueando o grupo de cinco homens que ri da excelente performance do bardo, que, pela primeira vez, desafina terrivelmente sua flauta, é o sinal. Flechas voam de encontro aos cincos homens, quatro caem mortos. O último tem a coxa atravessada por um dos projéteis, a dor é lacerante, entretanto seus gritos se afogam no próprio sangue, é possível ouvir um estranho som que vaza pelo corte em sua garganta enquanto Aegir limpa a adaga. Ambos os grupos chegam ao portão, afastam os corpos da entrada. O bardo relata que existem pouco mais de quarenta mercenários contratados dentro da cidade, que só se apresentam quando o alarme soa, se ocupando com outras atividades que lhes geram renda enquanto sua presença não é requerida, os demais são aldeões, agricultores e comerciantes, mulheres e crianças. O vento ganha velocidade, a chuva se torna pesada, pingos grossos encharcam os nove homens, raios rasgam o céu. A tempestade abafaria qualquer som da invasão, talvez até gritos mais distantes. Gundör os favorecia, devem agora honrar a dádiva, o solo exige o sangue dos que vivem dentro destes portões.


Aegir faz surgir um pano azul. É o sinal.

segunda-feira, 14 de janeiro de 2013

Joana.



Gotas pesadas castigavam a calçada suja em frente ao colégio, no toldo verde se espremiam alguns alunos do terceiro ano, uns mais secos, outros menores e mais fracos. Joana estava encharcada.

O surrado par de tênis sugava cada poça pela qual passava. Olhos semicerrados, boca fechada, passos lentos, as mãos seguravam as alças da mochila, ao seu redor a chuva ainda caia forte, pesada, fria, reconfortante. Estela, sua mãe, não gostava deste hábito da filha, dizia que prejudicava a saúde, que iria ficar resfriada, gripada, com dor de garganta. Nenhuma mentira, a garota sabia que provavelmente ficaria de cama, pensava nisso enquanto sentia os cabelos grudarem no rosto, só podia ver com o olho esquerdo. Não fez qualquer menção de liberar a visão do outro. Andava calmamente, um passo de cada vez, em alguns momentos duas vezes o mesmo passo, não tinha pressa. Na verdade, não era apenas pressa o que ela não tinha. Joana achava que não tinha nada.

Cada gota de chuva que a atingia causava uma sensação de prazer, era uma forma de sentir liberdade, aquela gota libertava a garota do que tanto a oprimia, porém durava somente aquele breve momento em que a gota ainda é gota e toca a jovem, nem antes, nem depois, apenas aquele instante. A chuva tão evitada pelos outros era desejada por ela, talvez exatamente por isso, por ser algo indesejado, desconfortável e gelado, molhado, que pode deixar doente. As gotas libertavam-na dela mesma, todavia Joana sempre foi astuta, sabia contornar o problema e mal a gota se espalhava já dominara a situação, já se tinha novamente nas mãos. De forma que o prazer de cada gota era seguido pela agonia da percepção de que nada mudara, ainda era a mesma, igual, imutável, mais molhada, mais gripada, mais triste. Tão terrível quanto esta percepção era o desgosto subsequente, de saber que o instrumento último de todo sofrimento era ela, vítima e algoz.

Uma brisa gelada trouxe alívio deste ciclo, a fez bater o queixo e esfregar os braços. Parou logo em frente à casa onde morava, olhou com olhos de desinteresse para o portão, por dois, três, talvez cinco minutos. Joana pingava, riu um sorriso triste ao pensar que estava tão molhada que logo estaria molhando a chuva. Não era sequer engraçado. Abriu o portão de metal, ouviu o rangido, era agradável, ela gostava de coisas velhas ou que assim parecessem. Andou até a porta, mas não entrou, ao invés disto sentou no degrau da entrada, se apoiou nos joelhos e, como se não estivesse molhada o suficiente, chorou. Não sabia o motivo, mas chorou mesmo assim. Chorou porque estava frio, porque estava molhada, chorou por saber que não chorava por isso, por estar sentada na entrada da casa, por ser uma idiota, por saber que ficaria doente, por odiar chuva, por adorar chuva, chorou de dor, de dor novamente e mais uma vez, chorou porque doía o peito, porque chorou.

Alguns minutos se passaram, talvez mais do que alguns, entretanto com certeza passaram, ela sabia disso, sentira o peso de cada um. Pois o tempo pesava para Joana, os segundos eram medidos em quilos, minutos em toneladas, era assim que a garota pesava seu tempo. Não fazia sentido, nem havia por parte dela qualquer pretensão que fizesse, só gostava de deixar clara a mensagem. Levantou, esfregou o tênis direito no tapete, depois o esquerdo, abriu a porta, entrou, fechou a porta, deixou a mochila no canto da parede, tirou os tênis e deixou ao lado da porta, tirou as meias e jogou por cima, andou até o quarto onde tirou a roupa molhada e trocou por uma seca. Chorou um pouco mais. Foi até o banheiro, pegou uma toalha e secou o cabelo, com o olho esquerdo pôde ver o próprio rosto no espelho, sentiu na garganta um nó que segurou até voltar ao quarto. Doía.

Acordou depois de três horas, o rosto inchado, horrível, cabelo arruinado, continuava doendo. Ouviu a mãe chegar em casa, praguejar, dizer que Joana iria lavar os tênis e a meia, dizer que estava fazendo o jantar, dizer que o pai já estava em casa. Ligou o computador e checou os e-mails, entrou no facebook e falou com uma amiga. Sorriu como se fosse alegre. Assistiu alguns vídeos, sentiu a dor novamente, não conseguiu despista-la. Deixou uma música tocando e deitou na cama, olhava o teto e as curiosas formas que lá se escondiam. A música tocava, mas Joana não ouvia, só seus pensamentos ecoavam, seus medos, seus receios, sentia dor, o peito doía, ela arfava, as lágrimas escorriam pela lateral da cabeça, paravam nas orelhas e ela, então, as secava, pois parecia que iriam para o ouvido. Por algum motivo isso a deixava mais triste. Joana chorava baixinho, era um choro de silêncio, as lágrimas simplesmente brotavam sem som algum. Claro, às vezes, e ela não sabia por qual razão, soluços apareciam. Ela não gostava disso, era quando sua mãe ouvia e se preocupava. Não queria que a mãe tivesse este tipo de preocupação, todavia, acima de tudo, não queria que soubessem que era triste. E por isso também chorava.

A mais remota lembrança de Joana é de algo que a deixou triste. Não alguma coisa que a tenha tornado uma pessoa triste, porém algo que a entristeceu, como uma topada faz doer o dedo por algum tempo. Do alto de seus dezesseis anos ela se perguntava se aquilo, de fato, a deixara triste ou sentia isto por estar triste agora. Nunca conseguia uma resposta e nem era importante conseguir, continuaria triste agora tendo sido feliz ou triste aos seis anos. O que era triste, mas não chorou por isso. Joana tinha este humor negro, mesmo que consigo. Via beleza nas situações de boca e sobrancelhas retraídas, como costuma dizer. No momento em que percebeu a vila de gnomos no teto do quarto sua mãe a chamou para o jantar, na terceira vez a garota desceu. Já conseguira parar de chorar.

“Como foi seu dia?” perguntou sua mãe, sem conseguir resposta. “Não deixe nossa Estrela falando sozinha, querida”, comentou o pai. Joana odiava o apelido da mãe. “Meu amor, tem alguma coisa te incomodando? Parece que andou chorando, pode falar com a gente. Seu pai e eu te amamos muito, nos preocupamos”. “Está tudo bem, só dormi um pouco, vou subir, tenho um trabalho para amanhã”. Ela sobe deixando pai e mãe apreensivos, a astúcia era genética, sabiam que alguma coisa não ia bem.

Joana se jogou na cama, pensou um pouco e chorou até dormir.