- Não! Eu não vou passar nada!
- Vô ti dexá com dos furo, filho da puta! Mim dá!
- Já falei que não! É minha, cansei dessa palhaçada. Eu
decido o meu futuro, não tu!
- I eu cansei di ti, vacilão.
Foi quando ele apontou a arma para minha cabeça, quando vi o
dedo se afastar. Olhava para ele e lembrava do Carlos, meu amigo quando
criança. E aquele dedo cada vez mais longe.
*****
Minha mãe está me encarando, não enxergo direito, as coisas
estão embaçadas. Procuro meus óculos, ou seria meu óculos? Essas palavras
difíceis, sempre falei meus óculos, termina com “s” então é plural, meu primo
diz que é meu óculos, porque é só um, se eu tivesse um de sol seria meus
óculos. Não deixa de fazer sentido. Desde pequeno uso óculos, desde que me
lembro troco shampoo por condicionador, uma vez gastei meio pote de condicionador porque ele não fazia espuma, mas nunca foi tão fácil pentear meu cabelo. Fazer
o que, é o preço, no banho tinha de tirar os óculos. Shampoo que não arde. Ela
diz que está na hora de acordar, que é hora de ir para a escola e que meu pão
já está pronto. Levanto, dou alguns passos com meu pijama do Jaspion até a
cômoda e tateio procurando a armação. No ensino médio as coisas estão melhores,
um pouco, já até converso, me sinto um pouco melhor. Tem uma menina, ela é
linda, o nome é Paula, acho que ela gosta do Gustavo. Não consigo achar os
óculos, vou para o lado e dou uma topada na cômoda, é a pior dor do mundo. A
educação física sempre é ruim, tomo bolada, sempre levo uma na cara e os guris
riem porque meus óculos caem, acho que fazem de propósito. Meu pai me deixa na
escola, a professora me leva até a sala, hoje é dia de pintar e fazer boneco de
massinha, vou fazer o Jiban, ontem ele morreu, fiquei triste. A lareira queima
enquanto o pai e a mãe brigam, a Tahiana também está aqui, dou um beliscão
nela. Com o Henrique e o Carlos vou andando para o terminal de ônibus, passamos
por um mendigo e ficamos com medo, corremos até cansar. Meu dedo ainda dói,
engulo o choro. Passei no vestibular para jornalismo, toda a família comemora, vamos
a uma pizzaria e meu pai paga tudo, ele e minha mãe se abraçam e beijam. O
Gustavo começa a namorar com a Paula, eles parecem felizes juntos. Minha
sobrinha faz dois anos e ainda não fala, a Tahiana me conta chorando que ela
tem paralisia cerebral. Jorge chuta a bola tão forte que meus óculos quebram
antes de cair no chão, eles olham assustados, a Camila está chorando, estou
enxergando vermelho do lado esquerdo. Meus pais param de brigar com a Tahiana
chorando, falo que ela não gosta que eles briguem. Foi a última vez que os vi
brigando. A Letícia gosta do Marcos. Não acho os óculos de jeito nenhum, chamo
minha mãe, quem aparece é minha irmã. Odeio jornalismo, me sinto bem melhor
fazendo Sistemas de Informação. Luke morreu, enterramos no quintal com a roupa
dos Changerman dele. A Camila gosta do Pedro. Chorei no quarto o dia todo de
saudades do meu avô, a Vi ficou deitada do meu lado o tempo todo. Último dia de
aula, amanhã é o vestibular, saíamos para beber, não lembro como a blusa
daquela menina foi para na minha mochila. Passamos outra vez pelo mendigo, o
Carlos joga alguma coisa nele, fiquei com pena, mas com medo de ir lá. Uma dor
de cabeça me incomoda há dias, minha mãe me obriga a ir ao médico, a Vi também.
O senhor Afonso me contrata como programador depois de um ano estagiando, meu
salário triplicou, vou para casa contar para a Eduarda. Minha irmã diz que meus
óculos não deviam estar lá, que a culpa não foi dela. Uma casa verde com
janelas brancas. Três garotos me batem dentro da sala, durante o lanche, a
Camila começa a chorar e eles saem correndo. Não passa mais Jaspion na
televisão, fico revoltado. A Viviane diz que sou o cara mais legal que ela
conhece, diz que precisa me dizer uma coisa e me rouba um beijo. Estrada rosa
com meio-fio cor de bocejo. Encontro o mendigo que corríamos quando éramos
crianças, ele está andando em minha direção. Minha primeira vez e da Duda, a
Tahiana chegou em casa de repente, quase nos viu. Vou passar as férias com meus
avós, o vô está doente, jogo videogame com ele quase todo dia. O médico tem uma
cara séria. O mendigo tem alguma coisa embaixo da blusa, ele quer minha
carteira. A Eduarda gosta do Miguel, vadia, podia ter me dito. Uma abóbora
falou comigo, o coelho vai ser rei, dominou o país dos gatos. Tenho câncer, é
terminal, a Vi diz que vai ficar do meu lado durante todos os dois meses.
*****
Vejo um bombeiro, não enxergo direito, as coisas estão
embaçadas. Procuro meus óculos, minha cabeça dói. Fecho os olhos para descansar
um pouco.