segunda-feira, 27 de agosto de 2012

Construindo um líder


As planícies da região de Lisarb são famosas por três motivos: o maravilhoso vinho que enche garrafas, copos e cabeças por todo o reino de Learsi; por ser a maior e menos próspera área do reino, povoada por tribos bárbaras pouco afeitas a não bárbaros e outros bárbaros; por fim, e talvez o mais conhecido, o responsável pelo título de "área menos próspera", Otragal, o maior dragão verde que o reino já avistou. Evidentemente tudo isto é muito interessante, nunca foi motivo para falar mal de qualquer lisarbiano nas mais nobres regiões de Learsi, todavia nossa história é sobre um jovem guerreiro de uma dessas várias tribos bárbaras, de modo que vamos deixar um pouco de lado tais questões. Seu nome é Yur, filho de Aknalb e Arukas, pai e mãe amorosos, que buscaram sempre a melhor colocação dentro da vila para o filho. E isto nos traz ao momento no qual se passa este relato, uma noite antes do grande festival de Avlis, o deus da Força, onde o novo chefe será escolhido e casará com a primogênita do atual líder, bem como ao local onde ele se passa, a Floresta Verde, que todos sempre consideraram um nome bastante previsível.

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A relva gelada era agradável, uma lembrança da infância, quando o pai o levava para conhecer os campos, os bosques e florestas onde, um dia, teria de buscar o sustento de sua família. Deitado olhando as copas invisíveis lá em cima, cuja existência era denunciada pelo burburinho da folhagem em movimento, ouvia o córrego de águas velozes e cristalinas que corria ao lado, um pomar, na margem oposta, completava a paisagem. Yur pensou que não seria uma coisa ruim passar a vida em um lugar desses, com sons assim, com árvores assim, com rios e pomares assim, com feras assim... e ele lembrou algo importante que sua mente, por algum motivo que lhe fugia no momento, deixara de se prender.

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Arukas estava agitada, andava de um lado para outro no que podemos chamar de sala, dentro do que podemos chamar de tenda. O filho parecia descontente desde que seu pai, Aknalb, lhe contara que ele, Yur, seria um dos candidatos a chefe. Normalmente as mães se preocupam com os filhos e esta não era uma exceção, entretanto a situação possuía agravantes, como, por exemplo, a possibilidade dos candidatos lutarem entre si, ou que fossem todos derrotados por aquilo que deveriam caçar - e temos de lembrar que falamos de uma tribo bárbara, ser derrotado é um eufemismo para morte, mas que entre mães nunca sai da moda.

- Pai, a ideia foi sua, ele é tão doce, tão meigo, como pode querer que vença uma coisa horrorosa daquelas?
- Mulher, ele já tem 16 anos! – disse um defensivo Aknalb. - Já tem mais do que idade para caçar e entrar na floresta sozinho. Além do que já está na hora de arranjar uma mulher e casar, logo vão começar a dizer que Yur não gosta de moças, que só sabe pintar e escrever... não gosto nem de lembrar disso... escrever!! Quem ensinou essa besteira para o garoto? Sabe, mulher? – vociferou Aknalb com um olhar acusador.

A esposa de Aknalb permaneceu calada fingindo indignação. Tudo o que ela queria era que o filho fosse líder da tribo, mas sem precisar lutar e, apesar de mãe entendia a realidade, morrer no processo, já que o filho, realmente, só sabia escrever e pintar.

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Os sons da batalha lá embaixo apavoravam Yur, que podia ouvir gritos, grunhidos e algo que parecia um gargarejo. Do alto da árvore em que subira há cerca de trinta minutos atrás, aguardava a certeza de que as feras fossem embora ou então o nascer do sol e a desistência das feras, o que acontecesse primeiro. A ausência de feras, porém, era ponto pacífico na discussão dentro de sua cabeça.

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Aquela fora uma noite especial para Otragal, completara oitocentos e setenta e nove anos, porém com um ar jovial, ninguém lhe daria mais do que setecentos. Junto com seus doze filhos e alguns poucos amigos comemorou a data com um festim, coisa pequena. Na véspera sobrevoou um vilarejo e levou algumas vacas, alguns carneiros e umas poucas virgens. O dragão não era de se gabar, mas a festa foi qualquer coisa de muito boa. Seus parentes de escamas azuis saíram voando de cabeça para baixo e rindo de como esse mundo estava estranho, como a carne estava boa e como o velho Otragal era um dragão legal. Apesar de concordar com tudo o que os dragões azuis falavam ele se permitiu uma pequena trapaça, guardou uma das virgens para fazer um lanchinho depois da festa. Gostava de mastigar as ruivas por último, não gostava de comida que parecesse suja e ruivas não mudavam muito quando caia sangue das outras em seu cabelo, era um ótimo lanche antes de dormir. Já procurava a garota há alguns minutos quando deu por falta do pequeno Etnepres, o caçula. Ligou um sumiço com o outro, acrescentou o bom gosto do filho por ruivas – herdado do pai, lembrou com um sorriso pouco modesto –, adicionou conformismo e subtraiu o último carneiro do cercado.

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Lá embaixo o silêncio convidava Yur a descer. Acontece que ele sempre considerou o silêncio traiçoeiro, alguém que não sabe brincar e costuma pregar peças desagradáveis. Preferiu testar a situação arremessando um pequeno ramo onde, há alguns minutos, algumas formas sombrias destroçavam outras formas sombrias. Nada, nenhum som. O que não era exatamente bom, pois um galho caindo no chão faz um barulho característico. Jogou outro. Nada. Foi então que se lembrou de um sonho de infância. O sonho em questão foi inventado naquele momento e consistia em sentir ainda mais dores nos braços e pernas até o sol nascer.

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Durante toda sua vida Anelim obedeceu a seu pai, sempre, nunca questionou. Quer dizer, só uma vez, ontem, quando saiu durante a noite para ver as estrelas. Ela olhava para uma especialmente brilhante, se perdeu em pensamentos admirando a beleza daquela bola de fogo distante milhões de anos luz ou, como ela dizia, A Grande Lantejoula Do Céu. O que aconteceu em seguida foi rápido e ela ficou um pouco confusa. Resumidamente é o seguinte: um dragão passou voando e sem pedir a levou embora. É isso.

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Os primeiros raios de sol já eram visíveis e nenhum dos caçadores havia voltado, toda a tribo estava aflita, em especial Anatik, a filha do chefe, pois casaria com o vencedor. Sua preocupação se justificava por alguns pormenores do regulamento para escolher o novo chefe, como, por exemplo, o fato de que todos os inscritos concorriam em igualdade, vencendo a disputa aquele que trouxesse a cabeça de um dos filhos de Otragal. Como em todo bom regulamento havia letras miúdas, que em uma sociedade que não utilizava a escrita como principal meio de registro, mas a fala, foram substituídas por sussurros através da ancestral técnica do Telefone Sem Fio. A técnica era tão ancestral que ninguém sabia o que significava o nome. Anatik, ao contrário de muitos dos competidores ouviu os sussurros, ouviu cada um deles com toda a atenção que tinha disponível, esse era o motivo de seu desespero.

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Etnepres vivia o final da infância, seus noventa e sete anos começavam a pesar, ele sabia que atos como o de roubar o lanche noturno de seu pai logo teriam consequências mais sérias. Porém ainda era uma criança e “logo teriam” lhe parecia, ainda, o mesmo que nunca. Vagou a noite toda com a mulher entre as garras, volta e meia rasgando um pouco de roupa, o que gerava insultos e indignação por parte dela.

-Ei! Uma coisa é me sequestrar, outra é me deixar pelada no meio da floresta! Seu pai me levou voando por três horas com mais quatro garotas e sequer amassou meu vestido!
-Você fala demais para um lanche noturno, se humanos não perdessem a maciez tão rápido já a teria matado, sabe... – argumentou distraído o réptil.

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Lá embaixo ainda reinavam as trevas, apesar de o silêncio ter dado trégua e cedido seu lugar a algo que parecia muito com roncos. Yur via o sol e sentia o calor, estava no alto de uma árvore, algo em torno de uns seis metros e percebeu que seja lá o que estivesse lá embaixo, a coisa podia vê-lo. O pensamento o fez tremer, o tremor o fez ficar apavorado, o pavor gerou um calafrio e o calafrio não gerou nada, não houve tempo, o jovem desmaiou antes de perceber que o pânico estava instalado. Antes mesmo de perceber que estava caindo.

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O jovem dragão parou no meio da floresta, já estava longe o suficiente do covil do pai, ele não sentiria o cheiro ferroso que a jovem logo exalaria. Deitou-a no chão em uma posição confortável para mastigar as entranhas, prendeu as mãos e pés com o pouco que restou do vestido e com algumas estacas o tecido no chão. Anelim reclamou muito do comportamento abominável da fera e do frio. Quando Etnepres preparava a primeira mordida ouviu o primeiro urro. Eram nada mais do que cinco jovens armados com espadas e escudos correndo em sua direção. O infante dracônico picou incrédulo, piscou outra vez, já um pouco mais convencido e na terceira piscada já tinha certeza de que não era uma ilusão, mas, sim, cinco seres humanos loucos correndo em sua direção. Ele cravou as garras na garganta do mais barulhento, mordeu uma espada e a arrancou da mão de um chocado guerreiro, com a outra garra atravessou o escudo e o tórax de um terceiro. Os três sobreviventes entreolharam-se e decidiram correr em fuga. O caçula de Otragal cogitou deixa-los, mas em sua mente infantil de noventa e sete anos imaginou que eles poderiam contar para seu pai quem havia levado a mulher. Assim saltou por cima dos homens derretendo dois com sua baforada de gás ácido e esmagando o último com o peso do corpo. O homem golfou sangue, respirou sangue, fez um barulho estanho e morreu.
Ao voltar para onde havia deixado Anelim a surpreendeu tentando cortar os panos com uma espada caída ao lado. Ele riu, apesar de tudo achava os humanos engraçados. Resolveu brincar. Deitou ao lado dela e fingiu dormir. Ela se alegrou e passou a agir mais rápido, quando viu o olho aberto do dragão sorrir. O monstro soltou a garota e a fez segurar a espada embaixo de sua enorme cabeça. Olhos em seus olhos e a desafiou.

-Vou te dar uma chance. Enfie a espada em minha cabeça, vá. – disse o dragão, tentando não rir, pois sabia que ela nunca teria força para vencer suas escamas.
Ela apoiou  o cabo no chão, tentando buscar distância para impulsionar o golpe. O dragão abaixou a cabeça até encostar-se à lâmina, não queria surpresas. Ela chorava. Ele sentia fome. Houve um estalo vindo do alto.

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O pânico era visível nos rostos de cada um dos habitantes da tribo, todos se amontoavam na entrada, esperando que um dos sete candidatos aparecesse. Uma das mais comovidas era Anatik. Ela tinha motivos para isso, sabia dos sussurros, sabia que se nenhum dos guerreiros conseguisse matar a fera, venceria aquele que sobrevivesse. Não tinha qualquer problema em casar com qualquer um daqueles que entrou na floresta, apesar de achar Yur um tanto afeminado, o que a atormentava era Onak.
Onak era um garoto pacato, diagnosticado como “inútil, inconveniente e covarde” aos dois meses de vida. Até hoje não parecia haver qualquer engano. Para a infelicidade da filha do chefe, Onak havia esquecido o teste e foi dormir em casa, onde estava até cinco minutos atrás, quando saiu para espanto de todos – e horror de alguns.

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Ao acordar Yur viu sobre ele uma jovem ruiva e nua que tentava reanima-lo. Ele nunca vira uma mulher nua, bom, não uma que não estivesse o xingando e jogando coisas. Sentia raiva por seus olhos estarem um tanto desfocados, ela parecia linda. Não, ela era definitivamente linda, estava apaixonado, não poderia seguir sua vida sem aquela mulher linda, ruiva e nua ao seu lado.

-Você está bem? Ei! Consegue me ouvir? Tira a mão dai! – gritou ao dar dois tapas, um na mão e outro na cara do rapaz.
-Ah, desculpe, ainda estou um pouco confuso... – disfarçou sem convencer.

Levantou, tirou a poeira da tanga e das botas de couro, olhou para o lado e viu algo quase tão surpreendente quanto a jovem que ele amava mais do que tudo.

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A coroação estava começando, Onak caminhava majestoso para o altar, suas botas de couro brilhavam, seu manto de peles parecia vivo, a sunga emitia um grunhido do mais puro couro de gazela albina, uma tanga digna do chefe da tribo. Anatik chorava.

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-É tipo uma competição, quem matar um filhote de Otragal e levar a cabeça vira chefe da tribo, entendeu? – disse um desapontado Yur.
-Sim, é bastante simples, na verdade. – disse uma Anelim vestida com escamas de dragão.
-Foi um golpe certeiro, não acha? Muita sorte sua eu estar lá naquela hora, a espada atravessou a cabeça sem problemas, aquele maldito morreu sem saber o que aconteceu. A besta teve o que mereceu! – tentou dizer esta última frase com uma entonação heroica, mas acabou tropeçando e quase derrubou a cabeça do dragão e a garota.
-Verdade, muito obrigada. Ele morreu por brincar comigo, aquele dragão desprezível. Uma coisa que não entendi ainda, o que você fazia lá em cima o tempo todo? Por que não atacou antes?
-Estratégia, pura estratégia... Veja, Anelim, é ali! Chegamos... Onde estão as pessoas...? Parece uma coroação! Não acredito que conseguiram matar outro daqueles monstrengos!

Eles correram, cada um apoiando a cabeça do monstro por um lado, já que nenhum deles conseguia sozinho. Entraram pelo portal e seguiram até o centro, onde Onak estava sentado em um trono, com Anatik ao lado. Ela chorava. Um xamã entoava cantos e dançava, girando e abençoando a coragem e bravura do novo líder. Foi em um destes giros que avistou um casal de jovens com uma cabeça de dragão nas mãos. Anatik parou de chorar.

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Aquela era uma situação difícil de resolver. Onak dizia que Yur estava fora do prazo, Anatik rebatia que não havia prazo algum, nem mesmo nos sussurros, os sábios da tribo argumentavam que os dois jovens haviam matado o dragão e carregado a cabeça, então ambos deveriam se casar com a filha do chefe. Anelim era taxativa,  não casaria com a filha de ninguém, Yur argumentava que só casaria com Anatik se Anelim casasse com ele também. Aknalb gritava para todos que seu filho era o mais corajoso homem da tribo, enquanto Arukas reconhecia na roupa de escamas de dragão a costura que havia ensinado para o filho, estava orgulhosa de sua mão firme.
Por fim o chefe da tribo, pai da filha prometida ao guerreiro vencedor, se pronunciou.

-É um caso raro, algo que nunca ocorreu! Situações inesperadas exigem medidas inesperadas! O conselho de anciões decidiu que só um deles pode casar com minha filha.

Protestos por parte de alguns, Anatik não sabia se era algo bom ou ruim, Onak esperneava sem parar. Yur e Anelim se olharam respectivamente com amor e dúvida.

-Assim – continuou o líder da tribo –, os dois jovens devem voltar para a floresta, onde irão lutar até a morte. O vencedor deve trazer a cabeça do outro. Não, digo, a cabeça do dragão! Quer dizer, apenas volte, a cabeça já está aqui.

Anatik estava feliz e sorridente, Onak chorava, Arukas e Aknalb sorriam sem saber o que dizer ou pensar, Yur estava de joelhos inconsolável, Anelim sorria confiante.

Os dois foram levados para a orla da Floresta Verde.

***

-Jamais conseguiria te matar, eu me rendo.
-Sei que não conseguiria, mas mesmo assim acho que podemos entrar em um acordo, Yur. Que tal se simplesmente fugíssemos?

Ele não acreditava no que ouvia, a mulher que mais amava no mundo, a futura mãe de seus dez filhos, uma deusa lhe convidava para fugir com ela.

-Sim. – disse com um fio de voz.
-Ótimo, vamos.

Eles caminharam até a margem de um córrego de águas rápidas, havia um pomar do outro lado.

-Eu poderia viver aqui. – disse Anelim.

É o destino, é o amor, somos nós, pensou Yur, em sua cafonice adolescente.

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Após dois dias Yur e Anelim foram dados como mortos e o guerreiro mais bem colocado na prova anterior casou com Anatik. Seu choro contrastava com o sorriso de Anok.

domingo, 26 de agosto de 2012

Amor e outras delícias


Uma noite eterna se arrastava enquanto da cama Alice olhava as estrelas imóveis na janela. Pensava sobre a vida, sobre a tinta do teto, sobre o som distante do mundo lá fora, enquanto, na parede oposta do abafado cômodo, Carlos a olhava com o carinho costumeiro. Ele era o motivo dela manter a sanidade nestes últimos anos, sua razão de viver, um ombro sempre disponível. Mesmo no escuro era possível ver seus traços generosos, bem definidos. Alice o encarava há alguns minutos em silêncio, admirando a pele bronzeada, os cabelos despenteados e jogados sobre o rosto, a boca entreaberta. Queria ir até ele e abraça-lo, dizer e demonstrar o quanto o amava. Foi quando sentiu em sua mão o anel dourado que anos atrás ganhara de Augusto. Sentiu o estômago embrulhar, não era remorso, tão pouco medo, já não sabia o que tanto lhe causava enjôos quando pensava no assunto. Carlos saiu das sombras e sentou na cama, era como se ele a acariciasse com seu sorriso.

 - Você está linda como sempre. Precisa ser forte, as coisas vão melhorar, um dia ele irá entender. Se a ama irá entender.
- Duvido muito, ele é louco, disse que prefere que um de nós morra. Tenho medo de que seja eu...

Alice deseja sentir o abraço do homem ao seu lado, mas ele levanta da cama e senta em um cadeira próxima sem sequer toca-la. Ela nunca entendeu esta distância que ele mantinha. Sem beijos, abraços, toques, nada, apenas olhares, elogios e insinuações. Uma lágrima caiu sobre sua mão, não aceitava a situação.

- Por que não me abraça? Por que não me toca? Sabe o que sinto, sabe o que quero. Então por que?
- Da mesma forma você sabe que não podemos, que é impossível. - disse ele.
- Odeio essa situação, odeio tudo isso...
- Por mais linda que fique chorando, por favor, não chore, a vida é assim. Temos de nos virar da melhor maneira possível, porém há coisas que não podem ser mudadas, precisamos aceitar e seguir em frente.

Os olhos castanhos transbordavam, apertava o peito tentando fazer a dor passar. Inútil. Ela mordeu o lábio e lembrou quando viu Augusto pela primeira vez, um homem forte, alto, muito bonito, extremamente educado e sedutor. Maldito mentiroso, descobriu. Virou o rosto para Carlos. Os dois se olharam, se aproximaram e, então, ouviram passos rápidos vindo do corredor logo antes da porta se abrir com um estrondo.

- Meu amor! - disse um homem entrando pela porta, sem obter resposta. - Seu silêncio me dói, sabe disso, por favor, fale comigo. Até quando irá continuar com isso, Alice? Trago flores, meu amor, faço tudo para que seja feliz e não recebo nem uma palavra, acha justo?
- ...
- Que seja. Trouxe comida, vou deixar aqui, está quente. Sabe, hoje tenho ótimas notícias, arquivaram seu caso, não precisamos mais nos preocupar com nada, somos livres para viver, amor.

Incrédula fixou os olhos vidrados nele, as lágrimas caiam copiosamente.

- Não chore, meu anjo. É o que sempre sonhamos, não?

Alice não sabia sequer o que pensar, um turbilhão de vozes, imagens e sensações congestionava seus pensamentos, sentiu que ia desmaiar. Abaixou a cabeça entre as pernas até a luz voltar ao seu mundo.

- Está tudo bem, amor? A notícia foi repentina eu sei, desculpe por não prepara-la. Farei assim, amanhã irei trocar o quadro da janela! Que tal um dia ensolarado? Já deve estar cansada das estrelas! - riu.

Ela não respondia, mal ouvia a voz de Augusto, tudo parecia leve, fantasmagórico. Ele falou algo mais, entretanto só viu a boca do homem se mexendo, não havia qualquer som, só um zumbido forte e agudo. Quando o mundo parou de girar ele já estava na porta.

- ... certo? Não quero fazer isso, mas não é normal. Então pare de agir como se houvesse alguém aqui com você, parece uma louca e isso não me agrada, amor. Vou providenciar móveis novos, pintar as paredes, também quero pensar em um modo para que não precise das correntes. Seus pais podem ter desistido de você, mas eu não. Até amanhã. Tome o remédio, este porão as vezes é úmido.

E fechou a porta.