VOLUME I - SOB A LUA DE RAGNAR
Capítulo 1: Cidade de Heróis
-Hahahaha! Somos o bando mais pobre da
cidade, é certo! - riu Erudir.
-Observação vulgar e desnecessária,
elfo. Acabamos de chegar na cidade, nossos recursos estão escassos, é apenas o
início de nossa jornada rumo à glória e à destruição da Tormenta! - reagiu
Tomoe, vestindo apenas a parte inferior da armadura e sandálias de palha.
-Você é um pobretão, é um fato. Um de nós - Eld olhava para Tomoe e percebia o óbvio enquanto polia o
escudo
O samurai olhava aturdido para o
paladino, que sempre soturno, calado, abria a boca apenas para lhes jogar
obviedades atrevidas, não conhecia seu lugar, sequer era da Ordem da Luz, um
lugar de guerreiros honrados e nobres, sua ordem nem ao menos ficava no Reinado. Não
expôs o que pensava, não seria delicado. Não que o servo de Khalmyr parecesse
se importar.
-Costumes bárbaros o de vocês,
comentando intimidades desta forma! - a naturalidade demonstrada por seus
companheiros frente à miséria chocava Tomoe.
-Falem por vocês - disse Lili - estou
fazendo um bom dinheiro na Feira e fora dela. Acho que vou comprar outro par de
botas, vi uma linda feita de couro de lagarto-elétrico.
-Deixe-os em paz, Lili. O samurai tem
seus costumes, devemos respeitar - Bain argumentou, surgindo do alto da escada
- Tamu-ra tem seus modos, todos bastante interessantes, mas contrastantes com
os nossos aqui. Ele já deve estar fazendo uma concessão razoável aceitando uma
união conosco, especialmente com você, Lili, uma especialista do sexo feminino.
-Ele não gosta de mulher? - questionou
Lili.
-A questão, creio, de fato, deve
tangenciar o campo do afeto, todavia de forma alguma se resume a ele - Bain
sorria, gostava de ser didático.
-Vai cagar carroça abaixo e lamber as
rodas, Bain, fala igual gente - Lili disse, sorrindo de forma delicada.
Bain olhou para cima, não sabia a
razão pela qual ainda tentava. Ao baixar os olhos viu ao lado do grupo um homem
de cabelos castanho escuros, barriga proeminente e vestindo um avental surrado tentando repetidamente interromper a discussão do grupo. O sujeito parecia constrangido demais
para fazer sua presença ser notada claramente, até que juntou forças e falou.
-Senhores e senhora, a questão
cultural é comovente, mas como fica a conta da taverna? São duas moedas de
ouro. Não sei quanto tempo pretendem ficar, mas dado o teor da conversa
gostaria de um sinal agora…
-Está me chamando de caloteiro,
plebeu? - Tomoe procurava a espada - Deveria pôr um fim nisto, aqui e agora!
Seria meu direito!
-Não seria - Eld informou.
-Não executo plebeus por suas línguas,
paladino. É meu direito, ou seria, mas abro mão, raras vezes a honra vale uma
vida. E a situação não é uma delas - Tomoe olhava para o
homem, olhos cerrados, o desgosto explícito.
O taverneiro deu alguns passos para
trás, com medo do tamuriano de tronco nu, estava a costumado a lidar com
encrenqueiros, porém aquele homem parecia diferente, ele agia por algum
dispositivo moral razoável, cretino, pensou ele, mas razoável, acima da
ladainha vomitada dia após dia na taverna pelos tipos mais diversos. Deu
mais um passo, se afastando do grupo, e então ouviu alguns poucos tibares em
seu bolso, todos de cobre, lembrou da família, do que lhes trazia seu sustento e
soube o que fazer.
-Por favor, por favor, me perdoem, mas
preciso saber se têm dinheiro para sua estadia, este é meu sustento. Tenho
família e... – começou, sendo interrompido.
-Seria um crime utilizar os serviços e
não pagar, faça sua parte Tomoe, já fizemos a nossa dormindo. Pague –
sentenciou Eld, olhos plenos de justiça cravados no samurai.
-Você é a nossa carteira por enquanto,
Tomoe, lamento por isso – Erudhir já não ria, apenas olhava para o homem com
compaixão.
-Vós sois dos piores! Pagarei, pois é
o devido e justo, é claro! Entretanto temos de arrumar novas fontes de renda,
esta aqui – apontou para sua bolsa de ouro – mingua a olhos vistos – e entregou
a quantia devida ao homem.
-Grato, senhores, desculpem qualquer inconveniente
– e pedindo a permissão de todos, se afastou.
-Extorquindo pais de família, que vergonha
– julgou Eld, o símbolo de Khalmyr no escudo e na alma.
Tomoe olhou para o paladino, tal
afirmação usualmente levaria a um combate, mas ele se sentia exausto apenas de
pensar na discussão que se seguiria antes de cruzarem armas. Girou os olhos e
viu o clérigo de Allihanna olhando uma cozinheira trabalhando, parecia
entretido com a mulher gorda e suada que preparava o desjejum, um pouco além
Bain conversava com a halfling alguma coisa que ele não ouvia, ela penteava os
cabelos negros de um jeito bonito, aparentemente ignorando o que o feiticeiro
tentava dizer. Perseverança, pensou, perseverança. Aquele grupo incomum parecia
confiável, apesar de seus modos terríveis, todos pareciam comprometidos e, em
sua grande maioria, fortes. Vingaria seu senhor, sua família, seu reino,
vingaria Arton.
*****
Gajan acordou cedo naquela manhã ainda
sob o efeito da visita de seu mestre, sua voz fresca na memória, a alegria de
ter o ouvido pronunciar seu nome, lhe chamar de aprendiz... Levantou da cama
rígida, deu dois passos até a cômoda, onde lavou o rosto na bacia de água,
trocou de roupa, vestiu calça, a camisa leve e uma jaqueta, quase um uniforme.
Foi até a porta e a abriu, girou nos calcanhares e trancou o cômodo. Desceu os
degraus de madeira velha que levavam ao andar inferior, na cozinha abocanhou um
pedaço de pão com nozes do dia anterior, bebeu um pouco de chá frio, a menina
iria chegar em uma hora. Lamentou por um segundo a iminente perda da garota,
uma serva bastante competente, a casa era mantida tão limpa quanto desejava, o
que era difícil. Afastou aqueles pensamentos da mente, o lamentar era uma
ofensa ao mestre, as instruções foram claras. Na sala de pedra de decoração mínima um quadro de uma velha bem vestida, a quem chamava de mãe quando perguntado, enfeitava
sozinho a parede, uma mesa de madeira escura com quatro cadeiras completava o
lugar, não havia nada que chamasse a atenção. Seguiu pelo corredor até uma
porta reforçada com ferro, abriu a fechadura pesada e desceu pela escada. No porão
ascendeu dois lampiões e começou a trabalhar, retirando algumas pedras do chão,
cavando a terra escura e úmida. Acumulou a terra em um canto, separou alguns
pergaminhos e os deixou no chão, próximos ao entulho. Ouviu a porta da entrada
dos fundos abrir com seu rangido característico.
-Olá – soou uma voz no andar de cima, era a garota.
Ela não deveria chegar tão cedo, só em
cerca de trinta minutos, algo aconteceu. Já chegou atrasada mais de uma vez, cedo
é a primeira, não está certo. Alguém descobriu? Foi enviada para averiguar as
coisas sem levantar suspeitas. Alguém sabe de algo? O mestre disse que poderia
acontecer, que alguém poderia desconfiar. Ela é uma isca. Não! Claro que não!
Até ontem estava tudo bem, inexiste qualquer razão para agora ser de outro
modo. Apenas pense, pense. Vá até ela e pergunte, como faz todo dia, seja
simpático com a vermezinha, agradeça a Lena, a deusa nojenta da vida, faça
parecer que é apenas um outro dia. Bateu as roupas, subiu a escada.
*****
Lili e suas botas novas guiavam o
grupo Grande Feira adentro, Tomoe lhe
pediu graciosamente, ainda na taverna, para encontrar a barraca de inscrições de esgrima, o elfo sorridente
queria a de arco, ela não fazia ideia de onde ficavam, mas acharia. Caminhava de
maneira confiante, como poucos halfling têm a capacidade de fazer no meio de
uma multidão com o dobro de seu tamanho, esquivava dos desatentos, acertava os
desavisados, seguia. Um bando de crianças passou correndo atrás de um goblin,
ele tinha os olhos arregrados de medo, elas martelos de carne. Muitos ofereciam
a chance de ganhar prêmios, do amor de uma donzela ao machado abençoado por
Lena, que não poderia ferir ninguém, o que parecia um jeito bonito de dizer que
não tinha fio. A procura durou cerca de vinte minutos, quando avistou uma grande placa onde se lia
“Grande Torneio da Grande Feira de Malpetrim, Inscrições aqui”.
-É ali na frente, vocês dois sabem
escrever?
-Pequena, todo samurai sabe escrever! –
se irritou Tomoe.
-Sim, Lili, não haverá problemas,
obrigado – agradeceu Erudhir, ainda incomodado com toda aquela gente ao redor.
-Certo, então peguem a fila e paguem a
taxa, irei esperar com os outros ali perto da tenda do homem que cai na água –
sorriu ela.
-Taxa? Mais dinheiro? – retrucou Tomoe,
resignado. Olhou a bolsa já quase vazia de tibares, seu orgulho tamuriano
secando uma lágrima que morreu antes de nascer.
Erudhir foi até o samurai, deu dois
tapas em suas costas.
-As coisas vão melhorar, amigo, é hora
de mostrar nosso potencial e quem sabe até ganhar algum ouro! – tentou aplacar a tristeza do jovem humano.
-Que Lin-Wu nos guie – disse Tomoe,
balançando a cabeça.
Bain olhava para o homem sentado em
uma tábua que ofendia aos transeuntes, especialmente os que compravam bolas de
madeira para arremessar em um alvo à sua direita. O homem balançava as pernas
no vazio sobre a água, enquanto um após o outro todos falhavam em lança-lo na
tina de água abaixo. A situação ofendia a inteligência e a dignidade do aggelus, os
humanos tinham seus encantos, mas este era um exemplo de como seu comportamento
ainda era primitivo e vergonhoso em muitos aspectos, sabia que encontrara
companheiros acima disto, que trilhavam um caminho mais razoável e digno. Olhou para o lado e viu Lili rindo, tomando lugar na
fila para comprar bolas.
-Lili! – chamou Bain, chocado.
-Ah, nem vem, eu vou ganhar o prêmio,
vou molhar aquele idiota e ainda acertar aquele moleque ali atrás com a primeira
bola, o peste pisou em mim ontem – disse Lili, sem dar margem para uma conversa
sobre o assunto.
-Acerte uma no homem que nos ofende,
Lili – sugeriu Eld, como quem sugere justiça, honra e tudo o que é correto.
-Nossa, foi a coisa mais certa que
você já disse desde que nos conhecemos! Acerto duas, a outra quando ele reclamar!
– disse Lili, extasiada com a ideia – Ei, tudo bem você sugerir isso, não é
contra alguma lei?
Eld fechou os olhos e virou de costas,
pois a justiça imparcial era cega. Por dentro riu do som do homem gritando com
a halfling, mais tarde faria penitência e não diria verdades cruas a respeito
do feiticeiro, ficaria quite com seu deus.
*****
Após o cumprimento não ouvira mais a
voz da menina, apenas o som de suas pequenas mãos limpando a mobília e varrendo
o chão, os pequenos e leves pés caminhando pelo chão de pedra. Era uma menina
bonita, um dia uma bela mulher, não, na verdade não, tal oportunidade não existiria. Uma pena, mas a beleza da
meninice seria seu apogeu. Cuidadosamente subiu as escadas de pedra do porão, da porta olhou para fora, em direção ao corredor, discretamente, tentando manter o corpo oculto, a
menina parecia trabalhar na sala. Lentamente alcançou o corredor e vislumbrou o
cômodo onde estava a garota. Apenas ela, pequena, a cabeça alcançado a metade peito de um adulto, cabelos negros lisos até a metade das costas em
trança, a pele avermelhada queimada do sol, usava um vestido azul puído, muito
provavelmente herdado de irmãs mais velhas. Estava apenas limpando, como fazia em
todos os dias de feira, tanta era a poeira que entrava pelas portas e janelas. Talvez
um alarme falso, pensou.
-Menina – chamou.
Ela pulou assustada, olhou para trás e
viu o homem parado na entrada da sala.
-Senhor, que susto! Desculpe pela
hora! Mamãe veio para a cidade e vim na carroça! Foi bem mais rápido do que
caminhar, espero que não seja um problema, senhor! - ela estava agitada, preocupada em ter ofendido de alguma forma o patrão.
Ele sabia que a mãe da menina vendia
verduras da fazenda, era um motivo razoável e crível. Ela não tinha a barra do
vestido empoeirado como de costume, fazia sentido.
-Claro que não, Laura, não há qualquer tipo de problema. Há pão com
nozes na cozinha, fique à vontade, querida. Depois me encontre no porão, tenho uma
pequena tarefa, lhe pagarei um extra por ela, certamente sua mãe irá apreciar – sorriu – Que Lena lhe ilumine o
dia – a bile lhe subindo.
-O senhor é tão bom para mim,
obrigada! Irei em logo, logo! – sorriu a jovem.
Ele caminhou até o porão, sem se
preocupar em parecer furtivo desta vez, continuando a cavar. Na medida em que
retirava a terra do buraco também suas preocupações sumiam, o mestre lhe dera a
missão, a ordem, ele não errava, é claro que se houvesse gente bisbilhotando
teria sido avisado, aquele tipo de teste não era útil ao seu senhor. Após alguns
minutos havia tirado terra o suficiente. Organizou o lugar, fez alguns símbolos
no chão com o líquido vermelho retirado de um frasco, o cheiro ferroso subiu.
Foi até a bacia de água que trouxera ao porão, lavou o rosto e os braços, com
um pano úmido tirou a terra acumulada nas roupas. Tirou então do bolso um
pequeno tecido vermelho, havia cortado do braço esquerdo da poltrona em seu
quarto, onde o mestre sentara e pousara as mãos. Levou o veludo aos lábios e
beijou, sentiu o estômago pesado e cabeça leve.
-Senhor? - ecoou ao longe uma voz.
Ele aspirava o ar com violência,
ressoando, queria que aquele aroma fizesse parte de seu corpo, de sua alma. Beijou
o tecido, lambeu-o lentamente e com prazer. Sentia-se pecando sem realmente se importar,
apenas queria... então ouviu.
-Desculpe, senhor? Quer que volte
depois? – disse a garota, reticente, olhando para as costas do dono da casa.
Gajan guardou lentamente o tecido em
seu bolso.
-Não, claro que não – tentava se
recompor, ajeitava os cabelos com as mãos e controlava a respiração – Não há qualquer necessidade.
Menina
nojenta, interrompera seu momento, garota maldita. Antes não iria apenas matá-la,
agora iria faze-la sofrer. Iria arrancar toda a pele, furar os olhos e cortar a
língua, iria trazer serpentes e lhes dar um banquete, ela iria gritar sem fazer
sons, iria implorar para morrer.