As planícies da região de Lisarb
são famosas por três motivos: o maravilhoso vinho que enche garrafas, copos e
cabeças por todo o reino de Learsi; por ser a maior e menos próspera área do
reino, povoada por tribos bárbaras pouco afeitas a não bárbaros e outros bárbaros;
por fim, e talvez o mais conhecido, o responsável pelo título de "área
menos próspera", Otragal, o maior dragão verde que o reino já avistou.
Evidentemente tudo isto é muito interessante, nunca foi motivo para falar mal
de qualquer lisarbiano nas mais nobres regiões de Learsi, todavia nossa
história é sobre um jovem guerreiro de uma dessas várias tribos bárbaras, de
modo que vamos deixar um pouco de lado tais questões. Seu nome é Yur, filho de
Aknalb e Arukas, pai e mãe amorosos, que buscaram sempre a melhor colocação
dentro da vila para o filho. E isto nos traz ao momento no qual se passa este
relato, uma noite antes do grande festival de Avlis, o deus da Força, onde o
novo chefe será escolhido e casará com a primogênita do atual líder, bem como
ao local onde ele se passa, a Floresta Verde, que todos sempre consideraram um
nome bastante previsível.
***
A relva gelada era agradável, uma
lembrança da infância, quando o pai o levava para conhecer os campos, os
bosques e florestas onde, um dia, teria de buscar o sustento de sua família.
Deitado olhando as copas invisíveis lá em cima, cuja existência era
denunciada pelo burburinho da folhagem em movimento, ouvia o córrego de águas
velozes e cristalinas que corria ao lado, um pomar, na margem oposta,
completava a paisagem. Yur pensou que não seria uma coisa ruim passar a vida em
um lugar desses, com sons assim, com árvores assim, com rios e pomares assim,
com feras assim... e ele lembrou algo importante que sua mente, por algum
motivo que lhe fugia no momento, deixara de se prender.
***
Arukas estava agitada, andava de
um lado para outro no que podemos chamar de sala, dentro do que podemos chamar
de tenda. O filho parecia descontente desde que seu pai, Aknalb, lhe contara
que ele, Yur, seria um dos candidatos a chefe. Normalmente as mães se preocupam
com os filhos e esta não era uma exceção, entretanto a situação possuía
agravantes, como, por exemplo, a possibilidade dos candidatos lutarem entre si,
ou que fossem todos derrotados por aquilo que deveriam caçar - e temos de
lembrar que falamos de uma tribo bárbara, ser derrotado é um eufemismo para
morte, mas que entre mães nunca sai da moda.
- Pai, a ideia foi sua, ele é tão
doce, tão meigo, como pode querer que vença uma coisa horrorosa daquelas?
- Mulher, ele já tem 16 anos! – disse
um defensivo Aknalb. - Já tem mais do que idade para caçar e entrar na floresta
sozinho. Além do que já está na hora de arranjar uma mulher e casar, logo vão
começar a dizer que Yur não gosta de moças, que só sabe pintar e escrever...
não gosto nem de lembrar disso... escrever!! Quem ensinou essa besteira para o
garoto? Sabe, mulher? – vociferou Aknalb com um olhar acusador.
A esposa de Aknalb permaneceu
calada fingindo indignação. Tudo o que ela queria era que o filho fosse líder
da tribo, mas sem precisar lutar e, apesar de mãe entendia a realidade, morrer
no processo, já que o filho, realmente, só sabia escrever e pintar.
***
Os sons da batalha lá embaixo
apavoravam Yur, que podia ouvir gritos, grunhidos e algo que parecia um
gargarejo. Do alto da árvore em que subira há cerca de trinta minutos atrás,
aguardava a certeza de que as feras fossem embora ou então o nascer do sol e a
desistência das feras, o que acontecesse primeiro. A ausência de feras, porém, era
ponto pacífico na discussão dentro de sua cabeça.
***
Aquela fora uma noite especial
para Otragal, completara oitocentos e setenta e nove anos, porém com um ar
jovial, ninguém lhe daria mais do que setecentos. Junto com seus doze filhos e
alguns poucos amigos comemorou a data com um festim, coisa pequena. Na véspera
sobrevoou um vilarejo e levou algumas vacas, alguns carneiros e umas poucas virgens.
O dragão não era de se gabar, mas a festa foi qualquer coisa de muito boa. Seus
parentes de escamas azuis saíram voando de cabeça para baixo e rindo de como
esse mundo estava estranho, como a carne estava boa e como o velho Otragal era
um dragão legal. Apesar de concordar com tudo o que os dragões azuis falavam
ele se permitiu uma pequena trapaça, guardou uma das virgens para fazer um
lanchinho depois da festa. Gostava de mastigar as ruivas por último, não
gostava de comida que parecesse suja e ruivas não mudavam muito quando caia
sangue das outras em seu cabelo, era um ótimo lanche antes de dormir. Já
procurava a garota há alguns minutos quando deu por falta do pequeno Etnepres,
o caçula. Ligou um sumiço com o outro, acrescentou o bom gosto do filho por
ruivas – herdado do pai, lembrou com um sorriso pouco modesto –, adicionou conformismo
e subtraiu o último carneiro do cercado.
***
Lá embaixo o silêncio convidava
Yur a descer. Acontece que ele sempre considerou o silêncio traiçoeiro, alguém
que não sabe brincar e costuma pregar peças desagradáveis. Preferiu testar a
situação arremessando um pequeno ramo onde, há alguns minutos, algumas formas sombrias
destroçavam outras formas sombrias. Nada, nenhum som. O que não era exatamente
bom, pois um galho caindo no chão faz um barulho característico. Jogou outro.
Nada. Foi então que se lembrou de um sonho de infância. O sonho em questão foi
inventado naquele momento e consistia em sentir ainda mais dores nos braços e
pernas até o sol nascer.
***
Durante toda sua vida Anelim obedeceu
a seu pai, sempre, nunca questionou. Quer dizer, só uma vez, ontem, quando saiu
durante a noite para ver as estrelas. Ela olhava para uma especialmente
brilhante, se perdeu em pensamentos admirando a beleza daquela bola de fogo distante
milhões de anos luz ou, como ela dizia, A Grande Lantejoula Do Céu. O que
aconteceu em seguida foi rápido e ela ficou um pouco confusa. Resumidamente é o
seguinte: um dragão passou voando e sem pedir a levou embora. É isso.
***
Os primeiros raios de sol já eram
visíveis e nenhum dos caçadores havia voltado, toda a tribo estava aflita, em
especial Anatik, a filha do chefe, pois casaria com o vencedor. Sua preocupação
se justificava por alguns pormenores do regulamento para escolher o novo chefe,
como, por exemplo, o fato de que todos os inscritos concorriam em igualdade,
vencendo a disputa aquele que trouxesse a cabeça de um dos filhos de Otragal.
Como em todo bom regulamento havia letras miúdas, que em uma sociedade que não
utilizava a escrita como principal meio de registro, mas a fala, foram
substituídas por sussurros através da ancestral técnica do Telefone Sem Fio. A
técnica era tão ancestral que ninguém sabia o que significava o nome. Anatik,
ao contrário de muitos dos competidores ouviu os sussurros, ouviu cada um deles
com toda a atenção que tinha disponível, esse era o motivo de seu desespero.
***
Etnepres vivia o final da
infância, seus noventa e sete anos começavam a pesar, ele sabia que atos como o
de roubar o lanche noturno de seu pai logo teriam consequências mais sérias.
Porém ainda era uma criança e “logo teriam” lhe parecia, ainda, o mesmo que
nunca. Vagou a noite toda com a mulher entre as garras, volta e meia rasgando
um pouco de roupa, o que gerava insultos e indignação por parte dela.
-Ei! Uma coisa é me sequestrar,
outra é me deixar pelada no meio da floresta! Seu pai me levou voando por três horas com mais quatro garotas e sequer amassou meu vestido!
-Você fala demais para um lanche
noturno, se humanos não perdessem a maciez tão rápido já a teria matado,
sabe... – argumentou distraído o réptil.
***
Lá embaixo ainda reinavam as
trevas, apesar de o silêncio ter dado trégua e cedido seu lugar a algo que
parecia muito com roncos. Yur via o sol e sentia o calor, estava no alto de uma
árvore, algo em torno de uns seis metros e percebeu que seja lá o que estivesse
lá embaixo, a coisa podia vê-lo. O pensamento o fez tremer, o tremor o fez
ficar apavorado, o pavor gerou um calafrio e o calafrio não gerou nada, não
houve tempo, o jovem desmaiou antes de perceber que o pânico estava instalado.
Antes mesmo de perceber que estava caindo.
***
O jovem dragão parou no meio da
floresta, já estava longe o suficiente do covil do pai, ele não sentiria o
cheiro ferroso que a jovem logo exalaria. Deitou-a no chão em uma posição
confortável para mastigar as entranhas, prendeu as mãos e pés com o pouco que
restou do vestido e com algumas estacas o tecido no chão. Anelim reclamou muito
do comportamento abominável da fera e do frio. Quando Etnepres preparava a
primeira mordida ouviu o primeiro urro. Eram nada mais do que cinco jovens armados
com espadas e escudos correndo em sua direção. O infante dracônico picou
incrédulo, piscou outra vez, já um pouco mais convencido e na terceira piscada
já tinha certeza de que não era uma ilusão, mas, sim, cinco seres humanos
loucos correndo em sua direção. Ele cravou as garras na garganta do mais
barulhento, mordeu uma espada e a arrancou da mão de um chocado guerreiro, com
a outra garra atravessou o escudo e o tórax de um terceiro. Os três
sobreviventes entreolharam-se e decidiram correr em fuga. O caçula de Otragal cogitou
deixa-los, mas em sua mente infantil de noventa e sete anos imaginou que eles poderiam
contar para seu pai quem havia levado a mulher. Assim saltou por cima dos
homens derretendo dois com sua baforada de gás ácido e esmagando o último com o
peso do corpo. O homem golfou sangue, respirou sangue, fez um barulho estanho e
morreu.
Ao voltar para onde havia deixado
Anelim a surpreendeu tentando cortar os panos com uma espada caída ao lado. Ele
riu, apesar de tudo achava os humanos engraçados. Resolveu brincar. Deitou ao lado dela e fingiu dormir. Ela se alegrou e passou a agir mais rápido, quando viu o olho aberto do dragão sorrir. O monstro soltou a garota
e a fez segurar a espada embaixo de sua enorme cabeça. Olhos em seus olhos e a
desafiou.
-Vou te dar uma chance. Enfie a
espada em minha cabeça, vá. – disse o dragão, tentando não rir, pois sabia que
ela nunca teria força para vencer suas escamas.
Ela apoiou o cabo no chão,
tentando buscar distância para impulsionar o golpe. O dragão abaixou a cabeça
até encostar-se à lâmina, não queria surpresas. Ela chorava. Ele sentia fome. Houve
um estalo vindo do alto.
***
O pânico era visível nos rostos de
cada um dos habitantes da tribo, todos se amontoavam na entrada, esperando que
um dos sete candidatos aparecesse. Uma das mais comovidas era Anatik. Ela tinha
motivos para isso, sabia dos sussurros, sabia que se nenhum dos guerreiros conseguisse
matar a fera, venceria aquele que sobrevivesse. Não tinha qualquer problema em
casar com qualquer um daqueles que entrou na floresta, apesar de achar Yur um
tanto afeminado, o que a atormentava era Onak.
Onak era um garoto pacato,
diagnosticado como “inútil, inconveniente e covarde” aos dois meses de vida.
Até hoje não parecia haver qualquer engano. Para a infelicidade da filha do
chefe, Onak havia esquecido o teste e foi dormir em casa, onde estava até cinco
minutos atrás, quando saiu para espanto de todos – e horror de alguns.
***
Ao acordar Yur viu sobre ele uma
jovem ruiva e nua que tentava reanima-lo. Ele nunca vira uma mulher nua, bom,
não uma que não estivesse o xingando e jogando coisas. Sentia raiva por seus
olhos estarem um tanto desfocados, ela parecia linda. Não, ela era
definitivamente linda, estava apaixonado, não poderia seguir sua vida sem
aquela mulher linda, ruiva e nua ao seu lado.
-Você está bem? Ei! Consegue me
ouvir? Tira a mão dai! – gritou ao dar dois tapas, um na mão e outro na cara do
rapaz.
-Ah, desculpe, ainda estou um
pouco confuso... – disfarçou sem convencer.
Levantou, tirou a poeira da tanga
e das botas de couro, olhou para o lado e viu algo quase tão surpreendente
quanto a jovem que ele amava mais do que tudo.
***
A coroação estava começando, Onak
caminhava majestoso para o altar, suas botas de couro brilhavam, seu manto de
peles parecia vivo, a sunga emitia um grunhido do mais puro couro de gazela
albina, uma tanga digna do chefe da tribo. Anatik chorava.
***
-É tipo uma competição, quem matar
um filhote de Otragal e levar a cabeça vira chefe da tribo, entendeu? – disse um
desapontado Yur.
-Sim, é bastante simples, na
verdade. – disse uma Anelim vestida com escamas de dragão.
-Foi um golpe certeiro, não acha? Muita sorte sua eu estar lá naquela hora, a espada atravessou a cabeça sem problemas, aquele
maldito morreu sem saber o que aconteceu. A
besta teve o que mereceu! – tentou dizer esta última frase com uma
entonação heroica, mas acabou tropeçando e quase derrubou a cabeça do dragão e
a garota.
-Verdade, muito obrigada. Ele morreu por
brincar comigo, aquele dragão desprezível. Uma coisa que não entendi ainda, o
que você fazia lá em cima o tempo todo? Por que não atacou antes?
-Estratégia, pura estratégia... Veja,
Anelim, é ali! Chegamos... Onde estão as pessoas...? Parece uma coroação! Não
acredito que conseguiram matar outro daqueles monstrengos!
Eles correram, cada um apoiando a
cabeça do monstro por um lado, já que nenhum deles conseguia sozinho. Entraram pelo
portal e seguiram até o centro, onde Onak estava sentado em um trono, com
Anatik ao lado. Ela chorava. Um xamã entoava cantos e dançava, girando e abençoando
a coragem e bravura do novo líder. Foi em um destes giros que avistou um casal
de jovens com uma cabeça de dragão nas mãos. Anatik parou de chorar.
***
Aquela era uma situação difícil de
resolver. Onak dizia que Yur estava fora do prazo, Anatik rebatia que não havia
prazo algum, nem mesmo nos sussurros, os sábios da tribo argumentavam que os
dois jovens haviam matado o dragão e carregado a cabeça, então ambos deveriam
se casar com a filha do chefe. Anelim era taxativa, não casaria com a filha de ninguém, Yur argumentava
que só casaria com Anatik se Anelim casasse com ele também. Aknalb gritava para
todos que seu filho era o mais corajoso homem da tribo, enquanto Arukas
reconhecia na roupa de escamas de dragão a costura que havia ensinado para o
filho, estava orgulhosa de sua mão firme.
Por fim o chefe da tribo, pai da
filha prometida ao guerreiro vencedor, se pronunciou.
-É um caso raro, algo que nunca ocorreu!
Situações inesperadas exigem medidas inesperadas! O conselho de anciões decidiu
que só um deles pode casar com minha filha.
Protestos por parte de alguns,
Anatik não sabia se era algo bom ou ruim, Onak esperneava sem parar. Yur e
Anelim se olharam respectivamente com amor e dúvida.
-Assim – continuou o líder da
tribo –, os dois jovens devem voltar para a floresta, onde irão lutar até a
morte. O vencedor deve trazer a cabeça do outro. Não, digo, a cabeça do dragão!
Quer dizer, apenas volte, a cabeça já está aqui.
Anatik estava feliz e sorridente,
Onak chorava, Arukas e Aknalb sorriam sem saber o que dizer ou pensar, Yur
estava de joelhos inconsolável, Anelim sorria confiante.
Os dois foram levados para a orla
da Floresta Verde.
***
-Jamais conseguiria te matar, eu
me rendo.
-Sei que não conseguiria, mas
mesmo assim acho que podemos entrar em um acordo, Yur. Que tal se simplesmente
fugíssemos?
Ele não acreditava no que ouvia, a
mulher que mais amava no mundo, a futura mãe de seus dez filhos, uma deusa lhe
convidava para fugir com ela.
-Sim. – disse com um fio de voz.
-Ótimo, vamos.
Eles caminharam até a margem de um
córrego de águas rápidas, havia um pomar do outro lado.
-Eu poderia viver aqui. – disse Anelim.
É o destino, é o amor, somos nós,
pensou Yur, em sua cafonice adolescente.
***
Após dois dias Yur e Anelim foram dados
como mortos e o guerreiro mais bem colocado na prova anterior casou com Anatik.
Seu choro contrastava com o sorriso de Anok.