Gotas pesadas castigavam a calçada suja em frente ao
colégio, no toldo verde se espremiam alguns alunos do terceiro ano, uns mais
secos, outros menores e mais fracos. Joana estava encharcada.
O surrado par de tênis sugava cada poça pela qual passava.
Olhos semicerrados, boca fechada, passos lentos, as mãos seguravam as alças da
mochila, ao seu redor a chuva ainda caia forte, pesada, fria, reconfortante.
Estela, sua mãe, não gostava deste hábito da filha, dizia que prejudicava a
saúde, que iria ficar resfriada, gripada, com dor de garganta. Nenhuma mentira,
a garota sabia que provavelmente ficaria de cama, pensava nisso enquanto sentia
os cabelos grudarem no rosto, só podia ver com o olho esquerdo. Não fez
qualquer menção de liberar a visão do outro. Andava calmamente, um passo de
cada vez, em alguns momentos duas vezes o mesmo passo, não tinha pressa. Na
verdade, não era apenas pressa o que ela não tinha. Joana achava que não tinha
nada.
Cada gota de chuva que a atingia causava uma sensação de
prazer, era uma forma de sentir liberdade, aquela gota libertava a garota do
que tanto a oprimia, porém durava somente aquele breve momento em que a gota
ainda é gota e toca a jovem, nem antes, nem depois, apenas aquele instante. A
chuva tão evitada pelos outros era desejada por ela, talvez exatamente por
isso, por ser algo indesejado, desconfortável e gelado, molhado, que pode
deixar doente. As gotas libertavam-na dela mesma, todavia Joana sempre foi astuta,
sabia contornar o problema e mal a gota se espalhava já dominara a situação, já
se tinha novamente nas mãos. De forma que o prazer de cada gota era seguido
pela agonia da percepção de que nada mudara, ainda era a mesma, igual,
imutável, mais molhada, mais gripada, mais triste. Tão terrível quanto esta
percepção era o desgosto subsequente, de saber que o instrumento último de todo
sofrimento era ela, vítima e algoz.
Uma brisa gelada trouxe alívio deste ciclo, a fez bater o
queixo e esfregar os braços. Parou logo em frente à casa onde morava, olhou com
olhos de desinteresse para o portão, por dois, três, talvez cinco minutos.
Joana pingava, riu um sorriso triste ao pensar que estava tão molhada que logo
estaria molhando a chuva. Não era sequer engraçado. Abriu o portão de metal,
ouviu o rangido, era agradável, ela gostava de coisas velhas ou que assim
parecessem. Andou até a porta, mas não entrou, ao invés disto sentou no degrau
da entrada, se apoiou nos joelhos e, como se não estivesse molhada o suficiente,
chorou. Não sabia o motivo, mas chorou mesmo assim. Chorou porque estava frio,
porque estava molhada, chorou por saber que não chorava por isso, por estar
sentada na entrada da casa, por ser uma idiota, por saber que ficaria doente,
por odiar chuva, por adorar chuva, chorou de dor, de dor novamente e mais uma
vez, chorou porque doía o peito, porque chorou.
Alguns minutos se passaram, talvez mais do que alguns,
entretanto com certeza passaram, ela sabia disso, sentira o peso de cada um.
Pois o tempo pesava para Joana, os segundos eram medidos em quilos, minutos em
toneladas, era assim que a garota pesava seu tempo. Não fazia sentido, nem
havia por parte dela qualquer pretensão que fizesse, só gostava de deixar clara
a mensagem. Levantou, esfregou o tênis direito no tapete, depois o esquerdo,
abriu a porta, entrou, fechou a porta, deixou a mochila no canto da parede,
tirou os tênis e deixou ao lado da porta, tirou as meias e jogou por cima,
andou até o quarto onde tirou a roupa molhada e trocou por uma seca. Chorou um
pouco mais. Foi até o banheiro, pegou uma toalha e secou o cabelo, com o olho
esquerdo pôde ver o próprio rosto no espelho, sentiu na garganta um nó que
segurou até voltar ao quarto. Doía.
Acordou depois de três horas, o rosto inchado, horrível,
cabelo arruinado, continuava doendo. Ouviu a mãe chegar em casa, praguejar,
dizer que Joana iria lavar os tênis e a meia, dizer que estava fazendo o
jantar, dizer que o pai já estava em casa. Ligou o computador e checou os
e-mails, entrou no facebook e falou com uma amiga. Sorriu como se fosse alegre.
Assistiu alguns vídeos, sentiu a dor novamente, não conseguiu despista-la.
Deixou uma música tocando e deitou na cama, olhava o teto e as curiosas formas
que lá se escondiam. A música tocava, mas Joana não ouvia, só seus pensamentos
ecoavam, seus medos, seus receios, sentia dor, o peito doía, ela arfava, as
lágrimas escorriam pela lateral da cabeça, paravam nas orelhas e ela, então, as
secava, pois parecia que iriam para o ouvido. Por algum motivo isso a deixava
mais triste. Joana chorava baixinho, era um choro de silêncio, as lágrimas
simplesmente brotavam sem som algum. Claro, às vezes, e ela não sabia por qual
razão, soluços apareciam. Ela não gostava disso, era quando sua mãe ouvia e se
preocupava. Não queria que a mãe tivesse este tipo de preocupação, todavia,
acima de tudo, não queria que soubessem que era triste. E por isso também
chorava.
A mais remota lembrança de Joana é de algo que a deixou
triste. Não alguma coisa que a tenha tornado uma pessoa triste, porém algo que
a entristeceu, como uma topada faz doer o dedo por algum tempo. Do alto de seus
dezesseis anos ela se perguntava se aquilo, de fato, a deixara triste ou sentia
isto por estar triste agora. Nunca conseguia uma resposta e nem era importante
conseguir, continuaria triste agora tendo sido feliz ou triste aos seis anos. O
que era triste, mas não chorou por isso. Joana tinha este humor negro, mesmo
que consigo. Via beleza nas situações de boca
e sobrancelhas retraídas, como costuma dizer. No momento em que percebeu a
vila de gnomos no teto do quarto sua mãe a chamou para o jantar, na terceira
vez a garota desceu. Já conseguira parar de chorar.
“Como foi seu dia?” perguntou sua mãe, sem conseguir
resposta. “Não deixe nossa Estrela falando sozinha, querida”, comentou o pai.
Joana odiava o apelido da mãe. “Meu amor, tem alguma coisa te incomodando?
Parece que andou chorando, pode falar com a gente. Seu pai e eu te amamos
muito, nos preocupamos”. “Está tudo bem, só dormi um pouco, vou subir, tenho um
trabalho para amanhã”. Ela sobe deixando pai e mãe apreensivos, a astúcia era
genética, sabiam que alguma coisa não ia bem.
Joana se jogou na cama, pensou um pouco e chorou até dormir.
Muito bom. Mesmo. Deu para... perceber a vida dela. Entender, a compreensão de seus pais é muito bela. Sua vida, é bela para ela dessa forma, ela acha. Mas sabemos que é triste..
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