quarta-feira, 23 de novembro de 2016

Sob a Lua de Ragnar | Prólogo | Parte 3

VOLUME I - SOB A LUA DE RAGNAR

Prólogo



-Eles são totalmente confiáveis – sussurrou Lili – entraram em uma briga sem ter nada a ganhar e não me enxotaram depois que fui conversar, bem, não falaram comigo por mais de uma hora, mas já é algo, né?
-É um bom ponto – ponderou Bain – Viemos procurar pessoas confiáveis, eles parecem, de fato, ser um grupo que preenche os requisitos.
-Com certeza, com certeza, aquele samurai é forte, ele tem uma espada de fogo – Lili olhava para Tomoe enquanto cochichava com Bain – e parece saber manejar – Quer dizer ele no mínimo faz parecer que sabe, o que já é quase a mesma coisa.
-Entendo, fogo, uma espada de fogo... um homem de bom gosto – Bain concordou, olhos fixos na katana do samurai.
-Sabia que você ia gostar – encerrou Lili.
Bain olhou para os lados, se fazendo de desentendido enquanto a halfling se adiantou.
-Como eu disse, ele concordou, parece que é bastante razoável que formemos um grupo, será mais seguro para cada um de nós e aumentará nossas chances de encontrar contratos, aventuras e oportunidades. Modéstia à parte, minha ideia é muito boa.
-O que for preciso, preciso reunir poder para retomar Tamura – resmungou Tomoe.
Erudhir parecia um pouco distante, levemente alcoolizado e imerso em sua curiosidade em relação às formas de lazer humano. Ele observava um pequeno grupo jogando cartas, todos apostavam e tentavam simultaneamente roubar no jogo, sendo que nenhum estava sóbrio o suficiente para tanto, tão pouco para notar que todos os outros roubavam, ou tentavam ao menos, tão pouco para notar que as quantias apostadas, recuperadas e roubadas eram aleatoriamente jogadas ou retiradas da mesa, sem qualquer relação com o valor dito ao se fazer a jogada. Erudhir ria daquilo.
-Não gosto de ladinos nem de arcanos – disse Eld – provavelmente trarão problema. Que seja, ela é péssima ladina, foi pega por um bêbado, fácil de ficar de olho.
Lili ouviu o comentário do paladino, já estava se acostumando com o fato de que ele só abria a boca para ofender alguém com uma verdade.
-... acho que isso encerra o assunto – disse ela – imagino que esta é uma boa taverna para ficarmos, o preço é baixo, não é muito suja e fica perto do centro da Feira. O elfo e o tamuriano talvez tenham interesse em saber, amanhã é dia de torneio, haverá disputa de arco e esgrima.
-Olá – disse um homem de repente, chegando no meio do grupo.
Todos olharam para o estranho falava.
-Desculpem, não pude deixar de notar o grupo que se formava – disse o homem – Permitam-me, meu nome é Erídias Mikatas, trabalho aqui em Malpetrim recrutando jovens promissores!  E este grupo é promissor! Diversificado, bastante completo! – continuou ele.
O homem tinha estatura um pouco acima da média, era robusto, sem ser forte, longos cabelos lisos e loiros penteados cuidadosamente para trás, pele alva, olhos azuis profundos e, ao contrário da grande maioria dos frequentadores da taverna, cheirava bem. Usava roupas ajustadas, personalizadas, uma calça verde-escura de um bom tecido, camisa branca de botões e por cima uma jaqueta de veludo azul com botões prateados. Parecia bem-sucedido, emanava empolgação e oportunidades.
-Deixa ver se eu entendi, você é um atravessador? Alguém precisa de aventureiros, você encontra aventureiros, os aventureiros fazem o trabalho, o cara paga e você paga os aventureiros, ficando, claro, com uma parte. Entendi bem? – perguntou Lili, um pouco irritada por não ter pensado em algo tão genial antes.
-Exato! Sem contratos não há aventuras, ou quase! E sem aventureiros muita coisa deixa de ser feita. Se uma parte não encontra a outra, bastante gente fica desapontada, pobre e, não raro, morta. Sou um facilitador! Entretanto é apenas uma faceta minha, também gosto de guiar, de encorajar e ganhar um dinheiro fácil com apostas. E foi esta última parte, por enquanto, que me trouxe aqui – sorriu o terceirizador de aventureiros.
-Guiar? – indagou Bain – Poderia ser mais claro quanto a esta parte?
Eld olhava desconfiado para o homem, como olhava para qualquer ser humano. Não gostava de Erídias, parecia falso e pouco confiável, não gostava da ideia de ser agenciado, a justiça age sem atravessadores. Observou o homem que conversava com os demais, explicando sobre a Grande Feira, sobre algumas questões econômicas envolvidas, anotando em um pedaço de pergaminho os locais e horários das inscrições de arco e esgrima, pois queria ver como o elfo e o samurai se saiam, poderiam ser azarões e ele ganharia dinheiro. Seus gestos eram fluidos, quase felinos. Eld odiava gatos. Todos. Humanos ele apenas desprezava e ignorava sempre que possível. De forma sutil ele se afastou do grupo, puxando a cadeira para um canto. Lá cochilou enquanto os demais discutiam coisas insignificantes, tais como ganhar dinheiro e poder comer nos próximos dias, Eld não suportava estes pormenores.
-Certo, certo, acho que por enquanto é isso. Inscrevam-se! Amanhã poderei ver se foi uma boa ideia vir até aqui e falar com vocês! Espero que mais tarde possamos tratar de outros assuntos, tais como contratos, antes quero ver algumas de suas habilidades. Inscrevam-se! – frisou Erídias, e dizendo isto se afastou acenando para todos.
-Por favor, receba meus agradecimentos – Tomoe tomou a frente do grupo e fez uma breve saudação, curvando levemente o corpo para frente – Que possamos continuar esta conversa depois de provarmos nosso valor.
Erídias sorriu e acenou com a cabeça, devolvendo com uma pequena mesura a saudação, virou de costas e subiu a escada em direção à porta.
Naquele homem Tomoe via alguém que poderia lhe guiar a lordes e senhores poderosos, todos contatos importantes para seus planos futuros. Aquela era sua primeira chance de mostrar seu valor, suas capacidades, por anos ele treinou corpo e espírito, não falharia. O samurai olhou para a espada em sua cintura, lembrou da tarde de primavera, mais de quinze anos atrás, quando recebeu das mãos do avô a arma. Foi o dia no qual completou seu treinamento básico de dez anos e se tornava um homem. Nada disto foi suficiente para salvar Tamu-ra da Tormenta, sequer perto de ser suficiente. Tomoe era fraco. E odiava sua própria fraqueza. Tomoe levantou os olhos e viu seu companheiro clérigo de Allihanna. Não entendia como o elfo podia ser tão positivo e descontraído, tendo Lennórien e o todos os reinos élficos sido destruídos pelos goblinóides de Lammor.
Erudhir estava ainda olhando para as pessoas da taverna, rindo de alguns bêbados, admirando a beleza crua das humanas, se interessava especialmente pela pressa humana em viver. O elfo, de certa forma, invejava os humanos, tinham uma deusa presente em cada ação de cada dia de suas vidas. Humanos viviam pouco, não possuíam habilidades inatas, não possuíam qualquer graça, todavia, eram incríveis. E tinham uma deusa admirável. Os elfos tinham Glórienn. Por um momento sua boca se contorceu e pequenas rugas se acumularam entre as sobrancelhas do rosto delicado.
-Prezados, foi um dia atribulado. Subirei para meu quarto, pretendo descansar para o dia de amanhã, que promete ser qualquer coisa de promissor. Uma ótima noite para todos, que Wynna lhes proteja. E, novamente, foi um prazer – desejou Bain, subindo para os quartos.
-É, vou nessa. Furo quem tentar me olhar pela fechadura – ameaçou graciosamente Lili, subindo as escadas de forma suspeita atrás de um grupo que tivera sorte no jogo, mas que agora estava já um tanto embriagado e vulnerável.
-Não temos um estábulo por aqui, Erudhir, talvez um quarto quieto te ajude – disse Tomoe, balançando a mão esquerda em frente aos olhos do elfo e lhe trazendo à realidade.
-Ah, sim, vamos ver. Um pouco de silêncio pode ajudar, mas fico no chão – assentiu ele.
Os dois subiram deixando a algazarra da taverna para trás. Lá também ficou um paladino, dormindo em um canto escuro.

*****

Tenebra, a deusa da noite e das trevas, já cobria o mundo com seu manto, a lua ia alta expondo becos e ruas sujas de lama e lixo, comerciantes recolhiam mercadorias e fechavam barracas, outros ainda insistiam e disputavam os últimos clientes. Através da pequena janela no segundo andar de uma casa ele observava o vai e vem das gentes. Ele aguardava. Por anos havia ansiado pela oportunidade, pela chance. Ela chegara. Olhou para dentro do quarto no qual pacientemente, uma vez mais, aguardava. Nada. Todo o ambiente estava impecavelmente limpo, fazia questão de manter o cômodo assim. Puro, imaculado. Não que fosse necessário, era, porém, sua vontade. Uma demonstração de afeto e cuidado para com o convidado, que certamente não passaria despercebida.
Voltou os olhos novamente para a rua, algumas crianças corriam atrás de um cachorro, duas meninas andavam calmamente de mãos dadas e com vestidos de festa, uma delas tinha sangue élfico, notou. Ambas deram passos rápidos quando um homem com roupas rasgadas e sujas se aproximou. Sorriu para aquilo e então lembrou. Lembrou de sua surpresa, anos atrás, no dia em que conheceu aquele que agora tinha a posição de seu mestre, seu tutor. Riu. Um viajante, quem poderia dar alguma coisa por um viajante? Um maltrapilho! E ele sussurrou a senha. A senha! Nos lábios de um mendigo! Na rua as pessoas riram quando abraçou o decrépito homem e, com afeto e zelo, o levou até sua própria casa “gostaria de entrar, caro amigo? ”, “que tal um cobertor para aquecer o corpo? Entre, por favor”. E o mendigo entrou. Já se contavam cinco anos. Cinco longos anos. Para seu mestre era nada, um vislumbre, para ele, mero humano desprovido de poder, uma parcela importante de uma vida. Tornou a olhar para dentro. Ninguém.
Do lado de fora um bardo cantava uma balada infame sobre Marah e Keenn, de como a deusa lhe aplacava a fúria guerreira. Torceu a boca para aquilo, deuses pequenos e tolos. Pelo canto dos olhos notou que o ambiente havia se alterado. Por um instante a sala ficou mais escura do que estivera até então. Ele olhou para o canto do quarto, onde uma poltrona de veludo carmesim estava posicionada, um conforto para o corpo de seu mestre. Viu um ponto escuro crescer, tomar forma humanoide e sentar no lugar de honra.
-A poltrona é uma extravagância – disse uma voz firme e poderosa, ao mesmo tempo reconfortante e agradável.
-Peço seu perdão, meu senhor – suplicou o homem, joelho direito apoiado no chão, olhos cerrados, na testa o suor se acumulava. Nervosismo, apreensão, ansiedade, idolatria.
-Levante. Temos coisas a tratar – ordenou o convidado.
O anfitrião se pôs de pé, levantou os olhos e viu um homem, pele levemente esverdeada, pequenas escamas cobrindo o rosto, um nariz vestigial, quase um detalhe, a boca sem lábios. O capuz recolhido mostrava uma cabeça sem cabelos, os olhos duas esferas amareladas com pupilas verticais. Aqueles olhos atraiam tudo a sua volta, havia uma força poderosa ali, era o poder de seu mestre, de seu tutor, daquele que lhe iniciara nos mistérios da ordem.
-Mais alguém frequenta esta casa? Este quarto? – quis saber o mestre.
-Apenas uma menina, não mais de quinze anos. Ela limpa o lugar – respondeu.
-Ela pode falar deste quarto, desta sua cadeira destoante de toda casa, de sua solidão, pode um dia ouvir por trás das portas e paredes. Mate-a. Faça o corpo desaparecer. Faça longe – ordenou o homem no canto da sala.
-Será feito, meu senhor. Não voltará a acontecer, peço seu perdão por esta estupidez – disse, o peito apertado pela preocupação que trouxera para seu amado tutor, o gosto ferroso de sangue inundando a boca pelo lábio mordido.
Por um momento se fez silêncio, nenhum dos dois pronunciou palavra, o homem sentado observava impassível o humano, que angustiado travava uma luta íntima para aceitar seus atos irresponsáveis e falhos. O ser ofídico parecia extrair prazer do sofrimento daquele homem, de saber que uma palavra poderia lhe causar dor, que cada pequeno sinal de desaprovação traria consequências para vida daquele ser. Ele sorriu e, para deleite do humano, falou com sua voz real.
-E o plano? Já encontrou um garoto adequado? Uma disssstraççção? Informe, Gajjjan, meu aprendizzz...
Uma onda de prazer tomou conta do corpo do homem, os olhos lacrimejaram e se voltaram para o teto do quarto, seus braços envolveram o próprio tórax em um abraço solitário, as pernas faltaram e ele estremeceu, a face entumecida. Aprendiz... aprendiz... aprendiz... a palavra rolava por sua mente, se espalhava e tocava cada canto, ele queria que ela estivesse em todo lugar. Aprendiz... sim, sim, sim... o... o...
 -Gajjjan... – a voz se fez ouvir novamente.
-Perdão, senhor! – disse, tentando se recuperar do devaneio, o corpo ainda trêmulo e úmido – É claro. O plano está sendo executado. O garoto foi escolhido, fiz os contatos solicitados, contratei dois grupos independentes, para garantir que a tarefa fosse executada. A distração está sendo providenciada, até amanhã terei tudo resolvido e sob controle.
O homem de olhos amarelos balançou a cabeça e apoiando as mãos na poltrona levantou, fez um breve gesto, murmurou algumas palavras e uma sombra se expandiu da palma de sua mão, crescendo até tomar todo seu corpo e desaparecer.
Gajan, agora sozinho, por alguns instantes observou o assento deixado vago. O coração martelando o peito, a respiração ofegante. Caminhou lentamente até a poltrona, observou o veludo limpo, caro e bem cuidado, ajoelhou em frente ao móvel e beijou um dos pés de madeira, em êxtase.




Ilustração de Amanda Mattos Della Lucia

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