terça-feira, 10 de janeiro de 2017

Sob a Lua de Ragnar | Cidade de Heróis | Parte 3

VOLUME I - SOB A LUA DE RAGNAR

Capítulo 1: Cidade de Heróis




Elfos eram, até poucos anos atrás, grandes entusiastas das artes, referência, suas cidades eram as mais belas, seus poetas os mais eloquentes, a música era sempre mágica, com tons arcanos e divinos. Lennorien fora o ápice da cultura élfica, mesmo membros da raça se admirava com suas belezas, sempre que a avistavam. Hoje não há muitos homens ou mulheres que tragam na lembrança as imagens, sons e cheiros daquela maravilha dentre as maravilhas produzidas pelos filhos de Glórienn. Erudhir Stalkingwolf era um deles. Após a queda da nação élfica ele rejeitou a deusa de seu povo e passou a adorar Allihanna, uma mãe calorosa, forte e presente. A deusa da natureza retribuiu o amor do elfo e lhe garantiu poderes, a habilidade de curar o mundo, interagir com a vida ao seu redor, de aquecer o próprio coração e seguir vivendo, deixando para trás tudo o que não mais vivia e que lhe causava um sentimento novo, ao menos para um elfo: saudade. Os elfos sempre lidaram de forma racional e equilibrada com a perda, entendiam que a morte vinha quando cessava a beleza da existência, desta existência. Seus amados embelezariam o mundo de Glórienn, a mãe de todos. Erudhir já não pensava assim. Então, a saudade.
Agora, todavia, o clérigo de Allihanna batia palmas e no ritmo da melodia de um bardo, festejando os resultados financeiros dos jogos dos quais ele e Tomoe participaram. Nenhum dos dois ganhou nada. Lili ganhou. Lucro suficiente para pagar a taverna, o pouso para a noite, a comida, estava ótimo. Tomoe parecia aliviado pela primeira vez desde a chegada a Malpetrim, fácil perceber que não estava acostumado a viver com pouco ou nenhum dinheiro, ao lado do elfo batia com a palma da mão direita na própria coxa, acompanhando o bardo, sorriso no rosto limpo e marcado pelo sol da viagem. No meio da turba embebida em cerveja barata e vinho de procedência duvidosa, Lili. A halfling aproveitava para aumentar o lucro do dia, aliviando descuidados do peso do ouro e da prata. Na mesma posição durante a última hora e meia, sentado em uma mesa isolada próxima da entrada, olhos atentos ao crime, olhos enganados por Lili e ao menos outros três ladinos que trabalhavam ali naquela noite, Eld observava o ambiente. Bain, em uma cadeira no andar superior observava com curiosidade, bebendo chá, sendo alvo de chacotas de jovens incautos e pouco inteligentes. O feiticeiro levantou e seguiu para o quarto, onde pretendia terminar a leitura. A ida ao quarto foi, entretanto, interrompida pela visão de duas pessoas abordando o samurai. Um homem de meia idade, cabelos castanhos circundando uma lustrosa careca no alto da cabeça e bigode vasto, barriga proeminente, costeletas até onde se poderia ir uma costeleta, camisa de algodão de qualidade, bem cuidada, mas gasta, calças de couro mais apertadas do que a prudência sugeriria, botas de viagem. Ao seu lado uma criança de aproximadamente dez anos, pele queimada do sol, magricela, cabelos castanhos claros emaranhados e sujos, nariz arredondado, sujo e ranhento, uma criança feliz, normal e carregando uma espada de madeira. Bain desceu até onde estavam o tamuriano e o clérigo, queria ouvir.
-Boa noite, amigo, meu nome é Miguel, este é meu filho, Pedro. Gostaríamos de conversar sobre negócios com os senhores, é uma boa hora? – indagou o homem, a criança ficando quieta de forma absolutamente normal e suspeita, como toda criança.
Tomoe olhava os homens, fazia força para lágrimas de alegria não verterem e rolarem rosto abaixo.
-Oh, boa noite! Boa noite, nobre senhor! Não há qualquer impedimento, por favor, senta-te à mesa conosco! – conseguiu dizer Tomoe, levantando e apontando uma cadeira vaga ao homem.
Atento, Eld levantou e caminhou até a mesa onde a conversa se iniciava. Chegou junto com Bain, que puxava uma cadeira. O feiticeiro, ao ver o paladino, o cumprimentou. Eld agradeceu e sentou-se. Bain olhou para ele, incrédulo. Puxou outra cadeira.
-Vejo que todos estão aqui, que bom – disse o senhor.
-Agora estamos – uma voz soou ao lado do homem.
Miguel olhou para o lado e viu uma halfling usando botas de couro, longos cabelos negros e uma generosa bolsa que parecia conter dinheiro.
-Estamos todos aqui agora, senhor, qual o assunto? – perguntou Erudhir, curioso com o surgimento dos companheiros.
-Sim, sim, então estavam todos juntos nos jogos, são uma equipe? Não havia notado alguns de vocês, que bom, que bom, são mais completos do que imaginei – Miguel olhava para a halfling enquanto falava, ainda intrigado com seu papel no grupo – Bom, o assunto que me traz aqui diz respeito a todos vocês. Gostaria de contratar o grupo para uma escolta.
-Quais os termos da pro... – começou Lili.
-SIM – encerrou Tomoe.
-Perdão? – pai e filho, um pouco assustados pelo grito repentino, observavam, olhos arregalados, o samurai.
-Perdão. Sim, aceitamos a honra de proteger vosso grupo até o local a ser combinado – Tomoe sentenciou.
-Tomoe, veja bem – começou, novamente, Lili.
-Já está decido.
-Como é que... – Lili tentou outra vez.
-Quando começamos? - Tomoe perguntou para Miguel.
-UHHHH, OMI!!! - explodiu Lili - Cê tá é louco de falar assim comigo! Me interrompe outra vez pra ver se não arranco essa tua cabeça! Cala essa boca, deixa de omice e ouve a especialista em contratos!
-Lili! - interviu Bain.
-Quié, hein? - retrucou Lili, o feiticeiro só observava.
-Mandaste-me cala... - começou Tomoe.
-XIU, OMI! Não me faz pegar a adaga!
Miguel e o menino olhavam, um tanto assustados, a pequena mulher silenciar o samurai, que ainda protestava, mas parecia um pouco aturdido e confuso, talvez até intimidado.
-Senhor, Miguel – sorriu Lili – O samurai faz parte dos músculos do grupo, eu sou o cérebro. Todo e qualquer acerto passa por mim, ele no máximo opina. Certo, queridos? – ela olhava para o restante do grupo, todos meneavam as cabeças entre surpresos e assustados – Então, qual é a missão exatamente? E que rapazinho esperto e amável é este, seu filho?
Pai e filho se entreolharam, que menina simpática. Miguel ficou satisfeito de ver uma garota com tino comercial tão apurado, então começou as explicações.
-Claro, vamos aos detalhes. Primeiro, não somos um grupo grande, apenas eu e este rapaz aqui, tínhamos uma escolta até ontem, mas nos abandonaram por um pagamento maior. A proteção seria para eu, meu filho, minha carroça e meus dois trobos. E o trajeto é daqui até Bek’ground, uma pequena cidade em Deheon, próxima da fronteira com Bielefeld. Sabe, normalmente não venderíamos nossas coisas tão longe, mas o menino queria muito ver a Feira.
-Proteção para duas pessoas, certo – Lili calculava.
Tomoe a honra ferida, observava os dois. Aquela pequena mulher bonita e atrevida, como ousava. Ele encerraria a disputa. Pensou em um valor alto, que possibilitaria uma discussão, uma negociação. Lembrou-se da empolgação da halfling com a aposta, o dinheiro fora de Tamu-ra e Ni-Tamu-ra fazia menos sentido.
-Trinta moedas de ouro! – disse Tomoe.
-Fechado! – se adiantou Miguel.
Lili era puro ódio, ressentimento e instinto assassino.

*****

A noite já ia alta, os sons da mata povoavam o ar ao redor, árvores centenárias, lares de pássaros e roedores, todos observavam a figura silenciosa, abaixo Gajan caminhava. Ia pela trilha apagada, tocha na mão esquerda, o cheiro de óleo incomodava, avançava devagar, tentando não chamar muita atenção, o que era difícil, o solo era esburacado, seus sapatos feitos para a cidade tornavam a travessia sofrível. Ele não ligava para a dor. Sua mente estava agitada, aquele era um passo decisivo para os planos do Mestre, não iria cometer erros, tudo seria perfeito. Por mais trinta minutos caminhou, fez voltas, chegou então a uma pequena clareira, uma fogueira queimava, sobre ela nacos de carne ainda úmidos de sangue, junto do fogo um lobo rosnou para o intruso. Das sombras emergiu uma criatura pequena, pouco menos de um metro, traços reptilianos, diria um observador desatento, dracônicos um mais informado.
-Olá, seinhor, nois tar pronto, quando ser? – a criatura falava com uma voz fina, parecia uma criança.
-Prontos desde antis de antis de antis de ontem, seinhor bom – outra criatura saiu da escuridão, o rosto marcado por agressões pretéritas, uma cicatriz tomando o lugar do olho direito.
-Sim, estamos prontos, a criança deve ser capturada amanhã, tudo já foi arranjado. Ele costuma se aproximar da orla da floresta, toda manhã é assim – o cheiro, aparência e existência das criaturas e enojava, teve de controlar o estômago.
-Claro, claro, seinhor da cidade, nós acha ele, prendi, arranha um poco pra educá direito e tenta deixá o lobo longe, ele gosta de filhoti humano hihihi – o maior deles riu de um jeito desagradável.
-Tentar não, deixem o lobo longe dele! Qualquer dano grave e vocês não estarão aqui para a próxima refeição! – Gajan olhou cada um do bando, que ele sequer sabia quantos eram, nos olhos, ao menos os que estavam visíveis – Amanhã, na orla, o menino. Deixem o pai vivo, preciso dele vivo e não muito machucado, batam só o suficiente, nada de arrancar pedaços, não quero ele morto por perder sangue!
-Qui chato, qui ruim assim, o seinhor da cidade e da bota não deixa fazer nada – uma voz da escuridão reclamou.
-Dou ouro. Façam como falei e terão ouro. E carne seca. E – ele respirou fundo – carcaça de boi fresquinha.
Os kobolds vibraram, uma carcaça inteira, sem miséria, quase cheia de carne, nada de coelhos, de esquilos, dias novos, uma carcaça quase nova.
Gajan deixou as pequenas criaturas comemorando, tinha alguns preparativos por fazer e a caminhada era longa.

*****

Tomoe tinha um olhar satisfeito. Miguel e Pedro já dormiam, Erudhir caminhava na rua, procurando uma boa árvore para encostar e passar a noite, Bain após ver a cara de Lili foi para seu quarto e trancou a porta, Eld resolvera ir dormir, pois a discussão que se seguiria não lhe interessava, apenas a justiça. No quarto, Tomoe observava Lili, que o acompanhara sem convite, entrar, fechar a porta e então o olhar com uma cara irritada. Os dois se encaravam há quase cinco minutos.
-Cara, tu só pode ser burro – Lili abriu a conversa.
-Veja como fala, pequena! Sou um samurai! – Tomoe não entendia a irritação da halfling, tão pouco a dificuldade em seguir os protocolos sociais.
-Velho, trinta moedas? Ele pagaria o dobro, talvez o triplo! A gente vai atravessar a porra do Reinado! Eu devia dar com a mão nessa tua cara! – Lili tentara aplicar a bofetada, de fato, logo após Tomoe fechar o acordo, mas ele levantara rápido demais.
-Menina, olhe...
-QUEM É MENINA AQUI? Eu sou mais velha que você, moleque, me respeita! Agora cê vai ouvir! Senta ai e fica quieto! – a halflling urrava, Tomoe sentou, intimidado, querendo diminuir a comoção e, também, um pouco curioso, estranhamente, de forma positiva – É o seguinte, a gente é um grupo, entende? Uma droga de grupo! Quando você foi lá apanhar do elfo, eu joguei pedra nele? Eu botei graxa na espada dele? Não! Devia? Devia! Mas não fiz nada disso, porque o guerreiro é você, cara! Agora, eu sou a negociadora, quando é pra conversar você chama o paladino? Não. Você conversa? Não! Sabe por qual razão? Porque ele não fala e você fala mal. Eu falo bem, você fala mal! Você é bom em bater nos outros, apesar de ter que melhorar, eu sou boa em conversar, não ser vista e em outras coisas. Pra isso, você me chama, pra bater nos outros, chamo você. Estamos acertados?
-Hm, ã, sim – Tomoe não conseguia argumentar, ela era boa.
-Então boa noite – e saiu batendo a porta.

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