quarta-feira, 4 de janeiro de 2017

Sob a Lua de Ragnar | Cidade de Heróis | Parte 2

VOLUME I - SOB A LUA DE RAGNAR

Capítulo 1: Cidade de Heróis




A guarda de Malpetrim ainda procurava a garota que havia agredido os comerciantes com bolas de madeira, um ou outro passando apressado, a descrição era de uma criança com olhar cínico e maquiavélico, uma mulher pequena, lembrava uma menina de 12 anos. Além disto, uma halfling de botas, onde já se vira aquilo.
-Você caiu com um elfo na primeira luta, Tomoe, é só olhar a chave na banca de apostas! – Lili estava irritada.
-Não vou entrar um uma banca de apostas – disse o ofendido samurai.
-São apostas legais, Tomoe. Não tem problemas, sabe? Olha, faz como achar melhor. É um elfo, e estão apostando muito nele, o que não parece ser bom, para falar a verdade. Espero que você seja bom, porque parece que ele é – Lili falava e andava, tentando se afastar do samurai que chamava muita atenção.
-Legais ou não, são jogos de azar, são desprezíveis e um veneno para a alma, pequena. E não duvide de minhas capacidades, o elfo sofrerá com minha katana! A arma de meus ancestrais o partirá ao meio no duelo! – Tomoe quase gritava de entusiasmo.
-Armas reais são proibidas, você vai usar uma espada de madeira comum – esclareceu Eld, impossibilitado de esconder o sorriso que lhe brotou no rosto.
-Não... vou... não...
-É, não – confirmou Lili.
-Que tipo de duelo é este?? Sem armas? – a indignação em pessoa.
-É um jogo, Tomoe, não é para pessoas saírem feridas – acalmou Erudhir.
Grupos de entusiastas pelas provas passavam apressados pelo tamuriano parado, tentando aceitar que não usaria sua katana. Aquilo não fazia o menor sentido, refletiu. Era quase um insulto.
-Apenas um torneio, mas na ficha consta a palavra duelo. Que jogo sujo, que vergonha para os participantes e organizadores – Tomoe sentou em um banco e se deixou ficar.
Jovens se acotovelavam e empurravam para conseguir o melhor lugar na arena aberta, vendedores corriam o lugar e ofereciam as delícias locais, alguns cambistas negociavam ingressos, estes eram cobrados apenas pelos camarotes, onde comerciantes e nobres podiam assistir as disputas longe da ralé.
-Vamos ver no que vai dar isso, haha! – riu, Erudhir, tentando dissipar o nervosismo.
-Boa sorte, Erudhir, fique tranquilo. Li que o ideal é que prenda a respiração para atirar a flecha, ajuda na mira – instruiu o feiticeiro.
-Ah, obrigado, vai ficar tudo bem, já faço isso tem algumas décadas, haha – rindo nervoso.
No centro da improvisada arena, no meio de uma larga rua fechada, foram posicionados alguns alvos, atrás muros de proteção de palha e madeira, além da cortesia de magias de proteção por conta da loja de itens mágicos de Alberto Ganache, mago, comerciante e cozinheiro. Um homem foi até o centro e começou a falar das maravilhas de Arton, de Petrinia e de Malpetrim, da honra de participar do tradicional torneio. A multidão vaiava, queriam flechas e diversão. Bardos cantavam, agora, o hino de Petrinia e tocavam seus instrumentos.
Do outro lado da arena o grupo notou um rosto familiar, era o sujeito da taverna, o atravessador de heróis. Ele acenou e sorriu, para em seguida sumir na multidão.
-Ele vai estar observando, Erudhir – disse Tomoe – temos que fazer nossa parte.
-Sim – o elfo sabia que deveriam agir bem naquele momento.
No centro da arena as regras começavam a ser explicadas, a eminência do início fez o público passar de hostil para apreensivo, nomes começaram a ser chamados, eram os primeiros participantes. Ouviu-se chamar o nome do elfo.
-Minha vez, me desejem sorte, pois só passa um.
-Não há sorte, só há o que é justo – afirmou Eld, tão rígido que fez uma pedra parecer mole.
Erudhir caminhou até o centro da arena, cumprimentou os que já estavam lá, um halfling de rosto redondo e um pequeno arco, um meio-orc, forte, com um arco imenso, um goblin usando uma vassoura com uma corda amarrada e dois humanos, estes pareciam melhores, arcos bem cuidados, os seguravam de maneira confiante. O clérigo tomou posição. Cada um teria direito a três disparos. Erudhir retesou o arco, os músculos do braço treinado exercendo a força necessária para puxar a corda resistente, a flecha pousada delicadamente ao lado do rosto, um olhar, soltou. O projétil voou rápido e atingiu quase o centro do alvo, não a pontuação máxima, mas um excelente tiro. A primeira saraivada fez o clérigo de Allihanna perceber quem eram seus oponentes, e ele só precisaria se preocupar com dois, o humano de cabelo curto e barba longa acertou o alvo próximo ao centro, não a pontuação máxima, mas um tiro muito bom, o outro, também humano, cabelos negros trançados na altura da cintura, barba feita, roupa preta, um osso pendurado no arco, cravou a flecha na pontuação máxima, o melhor tiro da rodada. Chamou a atenção do elfo a velocidade com que o último atirava, puxava e soltava  a corda instintivamente, como que fizesse parte de sua rotina. Admirável, pensou, péssimo para os concorrentes.
Mais uma saraivada, o goblin arrebentou a corda, puxou um trapo e amarrou na vassoura velha que fazia o trabalho de um arco, incrivelmente as flechas eram arremessadas, o halfling mirava por muito tempo, o braço pesava e as flechas perdiam alcance, caindo antes do alvo. O meio-orc, notou, usava o arco como se nada fosse, suas flechas entravam até a metade no alvo, sempre longe do centro. Erudhir novamente puxou a corda, a madeira de Lammor rangeu, "me guie deusa", pensou, e a flecha voou. Pontuação máxima. O humano de barba não igualou o tiro, o outro, porém, acertou a flecha anterior, destruindo-a. Aquele homem era muito habilidoso. Não havia nada a fazer, seria necessário um tiro perfeito e que o homem errasse ao menos um pouco, algo menos que a perfeição seria o sifuciente, não era impossível.
Última rodada. o meio-orc já havia indo embora e o goblin desistido, a vassoura quebrada no chão. Era o derradeiro tiro, a última chance, para ultrapassar o humano de roupa preta seria necessário um tiro perfeito. Retesou o arco, fez novamente a madeira ranger, a flecha encostada no rosto, olhos no alvo, segurou a respiração, como havia dito o feiticeiro, olhos no alvo, ouviu o arco do homem de preto retesar e ser solto, olhos no alvo, soltou. O homem de barba fez um bom tiro, não perfeito, estava fora, Erudhir acertou a pontuação máxima, olhou para o lado e não viu o homem de preto, ele já caminhava para fora da arena, sua flecha no centro do alvo, atravessando as duas anteriores. O elfo sorriu, existiam pessoas muito habilidosas no mundo, por algum motivo aquilo o alegrou. Vaias para o goblin, aplausos para os humanos e, surpreso, Erudhir notou que para ele, o halfling passava um chapéu e angariava bolinhos e outros quitutes da massa na cerca.
O clérigo caminhou até o grupo, para seu estranhamento: sorrisos.
-Amigo Erudhir! – Tomoe sorria com a boca, olhos, mãos e tudo mais.
-Tomoe? Você está bem? Descul... – o elfo começou, sem poder terminar.
-Ganhamos trinta tibares de ouro nas apostas! Trinta! Lili apostou no cara de preto! – pudores com jogos de azar esquecidos, a miséria para trás.
-Você apostou em outro? – Erudhir estava quase chateado.
-Lili disse que ele era muito bom, muito bom mesmo, iríamos ficar sem dinheiro hoje, fiz pelo bem do grupo! – Tomoe cravou os olhos no clérigo, o pragmatismo em forma de samurai – Agora é minha vez! Irei lançar todos ao chão! – a euforia em forma de tamuriano.
Os jogos prosseguiram, ao fim das disputas de arco o homem vestido de preto conseguiu o segundo lugar, ultrapassado por um elfo barrigudo de olhar preguiçoso e mira sobrenatural, seu nome era Sandolin. Para muitos a Grande Feira é uma oportunidade de negócios, para outros o sustento. Sandolin se encaixava no último caso. Sozinho, bêbado costumas, o prêmio do torneio lhe garantia bebida por meses sem a necessidade de trabalhar novamente, as tavernas de Malpetrim sempre torciam pelo elfo, uma garantia de lucro. Em terceiro lugar uma jovem halfling, a habilidade do tamanho do bolo que trazia na mochila - que não largava nem para atirar.
Após a breve premiação pessoas rapidamente correram para alterar a arena. Rapazes de calças curtas e sapatos surrados tiravam os alvos, carregavam a palha e madeira para fora da arena. Um mago dissipou a magia, fez surgir aves, luzes e um dragão piscou amistoso no céu daquele dia, ele fazia um sinal de positivo com o pata dianteira direita. Mais jovens traziam agora hastes de madeira dos mais variados tamanhos, as armas. Espadas curtas, longas, bastadas, adagas, as mais variadas modalidades.
Era a vez da esgrima, a prova mais popular da feira. O público vibrava, a esgrima, não raro, proporcionava ossos quebrados e gritos de dor, uma diversão saudável e barata para qualquer cidadão de Malpetrim. Crianças tinham cartazes com nomes de alguns competidores, rapazes e moças gritavam os nomes de seus favoritos, suas beldades. Tomoe estava na terceira chave, a primeira luta seria contra um elfo conhecido apenas por “Lulu”, tradicional participante, já havia ganho o torneio duas vezes, porém já há mais de 20 anos, para um elfo, ontem.
Crianças gritavam por seus ídolos e choravam ao vê-los saírem derrotados, machucados, sem dentes. Algumas se divertiam com isto. Então Tomoe adentrou à arena, passos firmes, decididos, na cintura duas espadas de madeira, uma longa e outra curta. Pelas regras do torneio bastava tocar o adversário para o golpe ser computado, de forma que Tomoe sacou apenas uma das espadas pela precisão do ataque. Seu adversário entrou em seguida, era um pouco menor que o samurai, físico mais modesto, cabelos curtos e olhos de rosados brilhantes, tinha um ar despreocupado que irritava Tomoe, trazia também duas armas, porém uma espada curta e outra ainda menor, uma adaga de madeira. Gritos por toda a parte quando o elfo acenou, crianças, jovens, adultos, muitos pareciam admira-lo.
-Eu lhe cumprimento, er, Lulu. Que vença o melhor.
-É um prazer, tamuriano, que nossa luta alegre aos espectadores – respondeu o elfo, sua voz era melodiosa.
 Os olhos negros do samurai analisavam o elfo, ele sabia reconhecer talento, e ali havia muito, seu adversário, percebia, lhe analisava desde o momento em que entrou na arena. O sinal foi dado, Tomoe segurou firmemente a espada com as duas mãos, o elfo sacou as armas, segurava-as com aparente desleixo, que não enganou Tomoe, aquilo era habilidade. Por alguns instantes apenas se olharam, se mediam, reconheciam a força um do outro. Então o samurai avançou. Rápido, Tomoe tentou golpear o pescoço do elfo com a ponta da espada, sendo bloqueado facilmente pela espada curta e, com a adaga, em um movimento sutil e despretensioso, o adversário tocou levemente a mão de Tomoe.
-Lulu um, Tomoe zero! – gritou o juiz da partida.
Gritos. Urros. Tomoe sentiu a pressão da torcida, não o intimidou. Lulu acenou para todos, mais barulho.
Os dois tomaram novamente posição, durante as eliminatórias cada golpe interrompia a luta, para evitar que lutadores muito fortes machucassem os muito fracos. Tomoe olhou com outros olhos para o elfo, ele era bom, melhor do que imaginara. Muito bom. Era difícil admitir, mas sequer notara o ataque até ser atingido. Muito bom. Forte. Desta vez o elfo tomou a iniciativa, o samurai aparou o golpe da espada, depois, pela esquerda, o da adaga. Lulu avançou com o corpo, mantendo a adaga parada no ar, impedindo a espada do adversário fosse liberada. Tocou a perna do tamuriano com a espada curta, de forma ainda mais suave que o golpe anterior.
Forte.
Mais gritos, mais aplausos, mais acenos do elfo, alguns beijos para moças na cerca, caretas para as crianças.
Novamente os dois em posição, Tomoe tomou outra vez a iniciativa, precisava de três golpes. Avançou como um raio, desta vez o elfo não bloqueou, fora pego de surpresa, o samurai avançou, espada no alto mirando o ombro esquerdo. Lulu com uma velocidade inumana deu um pequeno passo para frente, indo em direção ao ataque, e em seguida uma leve virada de corpo para a direita, saindo completamente do alcance do golpe. Impulsionou mais uma vez o corpo na direção de Tomoe e puxou o samurai, que com a força do próprio movimento se viu correndo rumo ao vazio. Sentiu o toque da adaga de madeira na nuca. Fim.
-Lulu três, Tomoe zero! Lulu avança! – sentenciou o juiz.
Tomoe estava impressionado, jamais perdera de forma tão brutal para qualquer um que não seu mestre. Assim como Erudhir, ele sentia uma estranha satisfação, aquele homem era forte. O público gritava o nome do elfo, ele retribuía com beijos e acenos, corria ao redor da arena, cochichava com moças, fingia bater em alguns rapazes.
Tomoe olhou para o grupo, a tristeza se fez presente, nem ao menos apostaram no outro. Ele ficou surpreso, Eld não tinha nenhum comentário desagradável. Talvez a luta não tenha sido vergonhosa como pensou.

*****

Do alto das escadas era possível ouvir palavras mágicas, um murmurar constante. Lá embaixo, no porão, carne convertida em pedra, pedra convertida em lama, lama convertida em pedra. Laura sumiu sem deixar rastros no mundo.

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